A pequena bailarina mágica que nunca beijou

Conheci Gustavo ainda muito novo, sempre uma pessoa séria e correta, com única exceção quando se tratava de suas sobrinhas. Estive presente nas festas que sucederam o nascimento de cada uma delas, ainda sorrio quando lembro de como ele gritava a beleza de cada uma das novas membras da família, “É linda! Não puxou o tio nem o pai, graças a Deus!”, de como chegou radiante no trabalho quando Gabriele, a mais nova delas, disse seu nome pela primeira vez, antes mesmo de dizer “mamãe”. Ajudei Gustavo na escolha de cada presente, Samanta gostava de bichos, ursinhos de pelúcia, borboletas coloridas e filhotinhos de gato, Gabriele gostava de bailarinas. Incrível ver Gustavo, sempre tão sério no trabalho, testando as caixas de música e sorrindo como criança ao imaginar a expressão que Gabriele faria ao abri-las.

Eu só conhecia as meninas por fotos, mas, elas eram quase minhas sobrinhas também. Todos no escritório conheciam-nas em cada pequeno detalhe, sabíamos seus sonhos, suas esperanças, enfim, todos vimos as meninas crescer através das histórias que Gustavo trazia dia após dia.

No aniversário de seis anos de Gabriele, houveram duas festas, uma no escritório, de onde saíram dezenas de pequenos presentes endereçados as duas, e outra na casa do Gustavo, onde de tio coruja, com o grande número de presentes dele e nossos, passou a ser “melhor tio do mundo” nas palavras das meninas.

Gustavo era mesmo o tio mais coruja do mundo, mas nós, como semi-tios nunca ficamos para trás.

Semanas após, infelizmente, Gabriele foi hospitalizada. Gustavo veio murcho para o escritório por dias, todos tentamos ser o mais profissionais possíveis, as vezes trabalhar com afinco é a melhor maneira de distrair a mente das tristezas. Foi assim até que um dia Gustavo veio sorrindo como se experimentasse uma nova caixa de música com bailarina rodopiante.

---- Gabriele melhorou? - Perguntei – Saiu do hospital? Está em casa?

---- Não. - Respondeu triste – Mas hoje vou visitá-la. E tenho uma arma secreta pra minha baixinha.

---- Hein? O que você vai fazer?

---- Vou entrar no quarto vestido de bailarina! Demorou pra conseguir um modelo do meu tamanho, mas, hoje vou devolver o sorriso para aquela boquinha linda.

---- Cara! Você é doido! Essa eu não perco por nada! Posso ir junto com você? Assim já conheço minha semi-sobrinha!

Fomos juntos para o hospital, levei por precaução minha filmadora para que pudesse compartilhar a cena com todos no escritório, que além de preocupados com a menina, também adorariam ver o Gustavo dançando balé de vestidinho rosa.

Filmei tudo desde a porta do quarto, não existem palavras para descrever o que foi a cena dele tentando colocar a sapatilha naquele pezão tamanho 44 sem rasgar o vestido sobre as roupas, mas, a expressão da enfermeira que passou por ali sem saber o que ocorria, descreveria muito bem.

Entrei primeiro no quarto, Gustavo estava escondido atrás da parede. Haviam quatro meninas brincando e eu perguntei:

---- Com licença meninas... Quem é a Gabriele que gosta de balé?

---- Sou eu. - Levanta timidamente a mão a menina de olhos agora tristes e que estava como as outras, sem nenhum cabelo na cabeça. Ao ver a câmera em minha mão, esboçou um sorriso tímido, mas, que de cara me apaixonou. Gustavo tinha razão, minha semi sobrinha era linda!

---- Filmaremos hoje um número muito especial, mas, vocês precisam me prometer que não irão dar risada! Nosso artista é muito famoso, mas, está morrendo de vergonha sempre que alguém passa pelo corredor. - As meninas me olhavam muito curiosas e tive tempo de pegar mais uma enfermeira segurando o riso passando pela porta. - Com vocês a bailarina mais bonita das ultimas temporadas!

---- Tiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiooooooooooooooo! - Gritou a menina ao ver aquele velho e querido palhaço entrar no quarto rodopiando e tentando ficar na ponta dos pés...

Como diretor daquele curta metragem, eu estava muito dividido entre as hilariantes peripécias de Gustavo e o contagiante sorriso das crianças. De certa forma eu dançava também, rodopiando para capturar o momento.

---- Vocês prometeram que não iriam dar risada! - Falei rindo mais que elas e só aumentei o número de gargalhadas.

Enfermeiras entraram no quarto para assistir enquanto Gustavo tirava cada uma delas para dançar. Eu deveria ter trazido um lenço, meus olhos lacrimejavam de tanto rir, assim como aquelas menininhas que nem em seus sonhos mais mirabolantes haviam imaginado alguma cena semelhante ao Gustavo fingindo que iria tropeçar e tropeçando de verdade sem querer.

---- Ops! - Gustavo se levanta fingindo que não se assustou.

---- Eu te amo tio! - Disse Gabriele – Obrigado por vir me visitar! A mágica deu certo!

---- Mágica? - Perguntou Gustavo, com o interesse e carinho autêntico em sua voz – Que mágica?

---- A gente fez uma mágica com o cabelo – Gabriele tirou de uma caixinha, uma pequena mecha de seus próprios cabelos amarrada em uma fitinha branca – Essa aqui é pra você. Queria que você viesse pra eu te dar. Assim depois que eu for, você vai poder brincar comigo perto de você.

---- Não diga isso linda! Você não vai a lugar nenhum.

---- Vou sim. O médico falou pra mamãe hoje cedo, eu ouvi. Ele falou que metástase é ruim.

Gustavo não sabia disso ainda, ninguém sabia. Imaginávamos que depois da quimioterapia, de tanta radiação e sofrimento, a menina iria voltar pra casa saudável. Aparentemente o pequeno tumor teve tempo de roubar de nós a linda criança que talvez ainda não entendesse o que isto queria dizer.

---- Metástase? - Perguntou Gustavo tentando não retirar o sorriso da menina com suas próprias preocupações.

---- Isso! Ele disse que semana que vem eu vou morrer. - Era cruel a maneira inocente como ela dizia estas palavras para nós.

---- Não querida. Não vai. - Gustavo entrava em negação, já não sorria.

---- Por isso fizemos mágica com o meu cabelo. - Gabriele continuava estendendo a mecha com a fita branca para seu tio – Essa mágica é pra você tio.

Gustavo pegou a pequena porção de cabelos, cheirou e elogiou o cheirinho de shampoo que ainda os impregnava.

---- Vou levar sempre comigo. - Gustavo segurava visivelmente seu choro e eu também me controlava – Sempre!

---- E a gente fez mais mágicas – continuou a pequena – Queria que você desse esse daqui pra uma bailarina de verdade. - pude filmar o pequeno envelope com uma dançarina desenhada em traços infantis, dentro dele, outra mecha com uma fita rosa – assim quando ela dançar, vou estar dançando também.

---- Querida... - Gustavo tentava fazer ela mudar de assunto. Era muito doloroso imaginar que ela nunca dançaria como sonhou dançar desde a primeira vez que viu bailarinas na televisão. - Por favor não diga essas coisas.

---- Eu sei que você vai fazer a mágica funcionar tio! Esta daqui, você vai dar pra um menino legal que seja como você – da mesma caixinha, ela tirava um envelope com um menino desenhado, e uma pequena mecha amarrada com uma fita azul – Não vou ter tempo de conhecer um menino para namorar comigo, e mesmo que tivesse não queria que ele ficasse triste quando eu for. Por favor tio, de essa mágica para um menino bem legal. Não precisa ser bonito, só ser legal. Um dia quando ele crescer e beijar alguém, eu vou estar beijando também. Você promete que vai dar pra ele pra mim?

---- Eu vou dar querida – Gustavo explodiu em lágrimas e eu o acompanhei – e vai ser o menino mais legal do mundo. - Novamente desejei ter um lenço, na verdade dois, Gustavo também precisava – Vou achar o menino mais lindo que existir para ser seu namorado.

---- Queria que ele fosse parecido com você – diz a menina – Por que você está chorando tio?

---- Desculpa linda. - Gustavo soluçava – Eu não quero que você vá embora. Não quero.

---- Por isso fizemos a mágica! Vai acontecer, você vai ver tio. - Gabriele era muito mais linda do que qualquer foto poderia ter me mostrado – Essa daqui você dá pra Samanta – Era um envelope com um coração, destinado a sia irmã – pra quando ela brincar, eu poder brincar junto com ela. Quando ela crescer e estiver sozinha, ela saber que eu sou amiga dela. Que estarei sempre junto. Quando ela abraçar você, o papai ou a mamãe, eu vou abraçar também.

Gustavo abraçou a menina tirando-a do chão. As enfermeiras que ainda assistiam estavam chorando também. As crianças sorriam. Lágrimas de adultos entre sorrisos mágicos de criança.

---- Você é a maior e mais bonita magica desse mundo! - Gustavo parecia haver aceitado a situação da menina, eu ainda não havia conseguido – eu te amo menininha! Eu te amo!

---- Também te amo tio, mas, você não serve para bailarina. - Eu juro que tentei rir, mas, só as crianças conseguiram.

Desliguei a câmera. Não podia mais continuar filmando. Aquela menininha nunca tinha ouvido falar de mim, mas, viu que eu chorava e me deu um envelope com um sol desenhado, para que quando eu estivesse triste, e tudo estivesse escuro eu poder fazer a mágica do sol aparecer. Agradeci, engoli meu choro e guardei. Aquela menininha prestes a abraçar a morte, não media esforços para fazer com que as pessoas a sua volta se sentissem melhor. Abraçou as enfermeiras e a mim como se fossemos membros da família, um abraço que pôde me trazer algum calor, mesmo naquele momento em que tudo parecia ser tão frio. Levei Gustavo inconsolado para casa, com certeza para ele foi muito pior do que para mim, que só tive alguns instantes com o pequeno anjo.

Dois dias depois, Gabriele faleceu enquanto dormia. Meu vídeo foi exibido contra minha vontade durante a cerimonia funerária como uma forma de última lembrança, para que todos pudessem vê-la sorrindo daquela forma angelical uma última vez, me recusei a assisti-lo, era doloroso demais. Como ultima homenagem, velas foram acesas e caixas de música foram abertas em torno do pequeno caixão.

Foi um dia escuro e triste para todos nós, até que me lembrei do pequeno envelope em meu bolso e, ao abri-lo e mostrar para o céu o pequeno laço amarelo que segurava os cabelos da menina, pude ver o sol aparecendo imediatamente. “Funcionou!” pensei forte tentando avisar o espírito daquela garotinha, que embora tenha sido levada tão cedo pela maldade de seu próprio destino, deixou com cada pessoa que conheceu, mesmo que muito rapidamente, um pouco de sua inacreditável magia. Essa mágica que hoje percebo em cada nota metálica de uma caixa de música, em cada pequena bailarina que gira.

As vezes sorrio para o sol e sinto que em algum lugar uma menininha mágica sorri para mim também. As mágicas dessa menina, eu garanto que funcionam.

=NuNuNO==

( Que também está precisando de um lenço )

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 04/04/2011
Reeditado em 09/04/2011
Código do texto: T2889676
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