Nascer João e morrer Maria

Desde cedo percebia algo diferente em si. Melar as mãos e os pés de areia quando preferia estar debaixo do alpendre juntando os retalhos e de agulha na mão costurar roupinhas para as bonecas. Sentia fervilhar dentro de si modelitos incríveis que as tornariam graciosas e como refúgio do tempo de obrigação pegava o estilingue e saia a correr por dentro da mata fechada. Corria, corria de si até chegar à exaustão e não sabia explicar tais sentimentos. Tinha o corpo leve e a alma atormentada. Perdia-se em pensamentos e nas palavras de castigo por parte de Deus se por ventura ousasse desobedecer à ordem natural das coisas estabelecidas.

Sentindo-se vencido pelo tempo de carreira, deitava na capoeira e lá ficava olhando para o céu azulado e para a beleza dos pássaros a voar. Desenhava-se nas asas coloridas e vistosas e desejava tê-las para também poder ter poder de voar, ir longe, bem longe, ir até onde chegasse seus sonhos. E se via voando como os pássaros, belo, leve, feliz. No tempo do sonho e dos pensamentos absortos enchia-se de radiante liberdade de expressão e se perdia em longos monólogos.

Ali fechava os olhos e adormecia. Dormia profundamente e conduzido pela delicadeza da fada dos sonhos, naquele espaço não havia proibição. Realizava os desejos mais ardentes de alma. Dançava nas pontas dos pés, rodopiava e se via no meio de bonecas gigantes e assim como elas também tinha cabelos compridos e corpo delineado. Podia se olhar no espelho e se refazer a cada novo rodopio e sentia a felicidade de ser. Trocava o corpo incomodo pelo corpo do desejo e da vontade e se enxergava como deveria ser. Sorria para si e fazia pedidos secretos sem saber a quem direito de que tudo aquilo pudesse ser real ou torna-se real.

No espaço do sonho tinha gente ao seu redor e não era perturbado por indagações que não sabia responder. Vivia o tempo de si e ia sempre ao encontro da felicidade. Neste estado de euforia percebia como brilhava o seu sorriso e se via refletido por inteiro por intensa sombra de luz. Seu corpo não era estranho, assim como não era estranho o que sentia e bailava pelo salão da fantasia nos braços de seres amados e realização de desejos internos.

Acordava com o ardor do sol em sua face e ainda permanecia com os olhos fechados fortemente por longo tempo, não queria acordar, não queria voltar à realidade que vivia que não era a sua. Contorcia o corpo e se punha de pé. Longe, bem longe ouvia uma voz chamando seu nome e o sinal de voltar para casa, mas não voltava. Sabia que mais adiante existia um lago de água cristalina onde os meninos de maior idade iam pescar e brincar livremente. Corria então mais uma vez e ficava de longe a observar por detrás das árvores aquele monte de corpos de machos só de cueca a brincar livremente e seus olhos se deliciavam com a cena. Ficava maravilhado com a força máscula quando jogavam as tarrafas para pescar os peixes que ali viviam.

Novamente se pegava sonhando e se via mergulhando naquelas águas e misteriosamente se transformava em uma bela sereia de cauda dourada e longos cabelos que brilhavam no encontro com a luz do sol. Nadava, nadava, mergulhava profundamente e vez por outra aparecia na superfície a cantarolar melodias que encantava os jovens mancebos objetos de sua cobiça e sem esperar se via capturada, enroscada na rede de pesca lançada na água e aquele monte de mãos a toca-lhe o corpo inteiro em consoante desejo de estarem alisando a mais bela diva. E as mãos a colocava no topo e se sentia estrela e tudo era bom, muito bom.

Distraído, não percebeu que também estava sendo observado. Desatento, seus olhos estavam mirados para um dos moços que dotado de liberdade já havia tirado toda a roupa e mostrava a todos suas intimidades e toda a imagem da cena fazia seus olhos mais abertos e cintilantes. Era um belo rapaz e fazia sua carne estremecer. Não conseguia sentir os fatos reais, somente se entregar ao estagio do sonho e vivenciar toda a fantasia proporcionada pelo que via. Entrou em estado de sinestesia e delirava na possibilidade de poder desfrutar de tal imagem.

Pego por trás e de surpresa, não sentiu quando um brutamonte comprido, espadaúdo, vestido de roupas de trabalho braçal, braços fortes e dentes serrados envolvia seu corpo frágil de menino adolescente e tampando lhe a boca, passava a resmungar palavras e expressões libidinosas e a passar-lhe a língua na orelha. Ficou imóvel e atordoado. Os sonhos haviam se transformado em pesadelo e toda a doçura do desejo, agora, era só desespero e terror. Nada daquilo pertencia ao seu sonho, era algo real demais e não sabia como entrar em defesa de si.

O facínora pegava-o brutalmente e roçava-lhe o sexo avantajado em seu traseiro de menino meigo e sem justificação seu calção era descido e seu corpo invadido sem entender o que estava acontecendo. Dentro de si uma dor infernal e o sentimento de ser reduzido a nada. Não sabia se chorava, se implorava, se fechava os olhos e aguentava tudo porque tudo iria passar quando percebeu o sangue escorre-lhe pernas abaixo e uma ardência na alma que provocava a vontade de vômito. Chamado de macho e fêmea, o sem pudor, imbuído de instinto e ferocidade grunhia para o belo ser que ele havia nascido João, mas havia de morrer Maria.

E enquanto tal ato era acontecido, os demais do lago vestiam suas roupas, sorriam, esvaziavam o ambiente em contentamento pelo lazer e pescaria, sem perceberem o que acontecia por detrás do verde das carnaúbas. Ali, logo ali tão próximo. O desejo de colher algumas palhas ainda fez um deles chegar próximo, mas os corpos em moita não foram vistos.

Terminado o serviço, o víbora, invasor da intimidade alheia não mostrava aparência de prazer saciado, ainda o arrastou para o lago o qual há tão pouco tempo sonhara ser uma bela sereia e fez-lhe mergulhar até a exaustão num mar de pesadelo sem cores, agulhas, nem botões, nem bonecas. Mergulhava e pela primeira vez teve tempo de descobrir que não sabia nadar e que nada que estava acontecendo tinha haver com os sonhos tantas vezes idealizados em momentos de gratidão e possibilidade de ser feliz.

Seu corpo frágil não resistira a atos tão brutais. Fora afogado pelos sonhos de ser feliz e ser ele mesmo pela vontade subjetiva. Afogado pelas mãos daquele que há treze anos havia lhe trazido a vida por um ato de amor.