O nosso velho

A primeira pessoa que o viu seguiu reto. Não ligou para o corpo ao chão. Nem notou que o corpo era vivo, ofegava, e tinha a face colada pesadamente contra a calçada. Apenas passou e sabe-se lá em que pensava.

A segunda pessoa que o viu parou. Agachou-se, pousou a mão no corpo e entendeu que era velho, muito mais velho do que os cabelos brancos insinuavam.

- Senhor, tá tudo bem? Senhor?

Perguntou mas não houve resposta. E o que então pensou não se sabe, mas adivinha-se. Ligou para a ambulância. Do outro lado da linha uma voz de mármore informa que não pegam bêbados. A segunda pessoa insistiu, disse que parecia infarto, podia ser derrame, mal súbito, qualquer coisa assim. Logo a viatura de emergência apareceria.

Nisso a terceira, a quarta, a quinta e a sexta pessoa surgiram em torno do corpo caído. Todas elas viram que era velho, que ofegava, que o rosto não descolava da calçada. Notavam ainda que da boca entreaberta, contorcida contra o cimento, uma saliva viscosa surgia.

Súbito um desconforto torceu a garganta dessas pessoas. Um pai hipertenso, um tio cardíaco, um irmão obeso, um avô que vivia numa tênue linha propensa às mais desagradáveis surpresas, quem ali não tinha um familiar assim? Eis que alguém se prontificou a buscar água para o caído. Outro insistiu em chamar novamente pela ambulância, como se isso a fosse trazer mais depressa até ali. Sugeriu-se ainda efetuar alguma manobra de primeiros socorros, embora nem o dono da sugestão nem ninguém mais soubesse como fazer. Outros ficaram em silêncio, fechados atrás dum semblante tenso.

Em poucos minutos a ajuda chegou. Os socorristas, que eram dois, foram práticos como devem ter sido nos infindáveis treinamentos.

- O que aconteceu, senhor? - perguntou um deles, agachado junto ao corpo.

Nada de resposta. Olha em torno e manda a mesma pergunta, sem alvo certo.

- Então, pessoal, o que aconteceu?

Ninguém arriscou uma resposta. Resignados, aquela firme dupla de socorristas divide o esforço e põe o velho sentado de encosto contra o muro.

- Senhor, tá me ouvindo?

Mas não vinha resposta. O velho continuava ofegando, agora a baba lhe pingava no peito e seguia em linha sobre o fino suéter. E num instante, para testemunhar as gotas grossas que escorriam dos lábios inertes, vieram a sétima, a oitava, a nona e a décima pessoa. E como recompensa para tão atento grupo, o velho deu inesperado uso à boca: jorrou uma indefinível substância esbranquiçada, que só poderia cair onda a saliva até então caíra.

Uns espectadores cobriram suas bocas com as mãos. Nojo puro. Outros desviaram o olhar e protegeram o nariz do inapelável cheiro acre. Já os socorristas foram categóricos.

- Tá bêbado. É bebida.

- Um porre daqueles. - emendou o outro.

Antes que a dupla entrasse de volta na ambulância e partisse, ainda repetiu o que também deve ter sido exaustivamente praticado no treinamento.

- Não pegamos bêbados.

O grupo de pessoas ficou ali mais algum tempo. Elas contemplavam o velho, atitude não muito distante de filósofos em torno de uma pedra enigmática. E o ápice de tal filosofia veio com uma senhora, a quarta pessoa, em conclusiva constatação.

- Tsc, tsc, vomitou sobre a própria roupa.

- O danado tava é bebendo!

- Êta, mardita!

E todos riram.

- E sabe que eu acho que já vi ele por aí? É, vi sim! Ele vai num bar ali pra cima.

- Olhando assim, com atenção, também reconheço.

- Isso, ele mesmo, o bicho vive por aí trançando as pernas.

- Olha! Tá que até ronca!

- Êta, mardita!

Desde que vomitara, o velho caído não mais ofegava, e passou, mesmo, a roncar. Isso, somado a repetida piada, conquistou esplendoroso sucesso junto ao público. Todos riram.

Antes da risada virar eco, alguém resolveu ir embora. Os outros imitaram e foram saindo. Os dois últimos que restaram, plateia remanescente dum espetáculo que chega ao fim, sentiram um leve desconforto e uma necessidade repentina de justificar por que estavam saindo, mesmo que todos os outros não o tivessem feito.

- Preciso voltar ao trabalho!

- Ixe, é mesmo. Olha a hora! Tô indo também.

E foram embora. Ninguém mais estava por perto quando o velho pôs-se de pé, limpou a boca com a manga de seu suéter, e com passos vacilantes começou a caminhar. Sabe-se lá em que ele pensava quando dobrou a esquina.