Casa de papelão

A comunidade se contorce naquele braço de rio. Os pequenos barracos se confraternizam bêbados, caindo uns sob os outros. São as casas de papelão, sem sustentação maior que as façam retas, ordenadas e comportadas. Tudo vira uma bagunça engraçada para aqueles casebres, de simples gentes, amontoados como retraços de fibras vegetais a se reprocessarem, transformando-se em residências que se amedrontam a cada inverno. Não há amor na chuva. O derretimento não faz parte dos gracejos dos casais apaixonados. Derretem destruindo começo de sonhos, abrigo de sonhos futuros.

Às vezes o sorriso é sinal de que está tudo indo, caminhando muito bem. A comida cheira do lado de fora. Não se cozinha dentro de casa. A comida e a lenha é o próprio combustível materializado. Uma fogueira pronta pra se unir a outras fogueiras num balé de fogo, dançando e consumindo tudo o que encontrar pela frente: gentes, outros barracos. Sonhos.

O bairro desorganizado é um convite para os pequeninos e pequeninas correrem, brincando de pega pegou, de academia, de pião e papagaio, polícia ladrão. Brincadeiras antigas que se reproduzem no universo rico de uma vida pobre no desenho, nas imagens, mas que é repleta de significados. Um cenário real, para gente real. Enquanto brincam, as crianças têm suas primeiras experiências com as letras. São informações as mais diversas, confusas para aqueles pequenos seres que não conhecem a verdadeira realidade estampada naquele bairro vegetal, orgânico até as telhas, de poucos metais. São símbolos aproveitados pelos mais velhos, mostrando-lhes o caminho da alfabetização improvisada. Estão lá. Todos os símbolos encontram-se nas paredes, nos tetos, nas portas e janelas, num quadro já preenchido e reescrito a cada invernada. São caixas de geladeiras, de ar condicionado, televisores, fogões, sapatos e bicicletas. Estas últimas aprendidas pelas imagens que as crianças reconhecem quase que automaticamente, produzindo uma sensação de tristeza naqueles pais ao perceberem o quanto será difícil os pequenos possuírem aquele brinquedo.

No bairro de papelão estacionam-se as carruagens na frente das casas. São caixotes de geladeiras que ganham pneus e braços. Carruagens fantásticas que garantem os sustentos de tantas famílias ribeirinhas. Transportam a seiva de toda uma vida. Transportam papéis e papelões, crianças, jovens, mulheres. Transportam os doentes para os hospitais.

São nos bairros de gente simples que se reproduzem as vidas por debaixo dos papelões. Os rebentos do novo mundo encontram saídas nas casas tortas e coloridas, multiplicando-se para mais tarde não tardarem a se reproduzir, a se perpetuar. Para mais na frente construírem novos bairros de papelão, com novas casas tortas, cheias de letras, de novos tetos de letras de papelão de geladeira, de fogão, de ar condicionado, de sapatos, televisores e bicicletas. Esta última mais uma vez tornarão a ser angústia de pais que não poderão ver seus filhos em cima delas, correndo no bairro de papelão, zunindo naqueles bairros vegetais. Mas como aqueles, aprenderão as primeiras letras, os primeiros números nas novas paredes, nos novos telhados de suas coloridas casas. Florescerão novamente e novamente pregarão novas paredes de papelão. Casas de papelão...