TORÉ

TORÉ

Naquele dia, as nuvens se esconderam por detrás da capa da noite e as estrelas, ousadamente, se exibiram nuas até que a lua botou seu olho por detrás dos montes no horizonte de Rodelas, e a tudo observava descaradamente. Ela foi aparecendo sutilmente passando uma borracha nas sombras e sem pudor se estabeleceu acima da cumeeira da casa de taipa da tia preta. Lá fora havia espalhadas pelo chão, esteiras de palha de bananeira, bancos de caraíba e tamboretes de umburana.

Uma grande fogueira também estava acesa ali. Lá dentro, no fogão à lenha, uma grande panela de barro cozinhava marí, outra fazia chá aromático, alucinógeno, de uma erva conhecida como cabeça de nêgo, que com cachaça era servida aos partícipes. O terreiro começava ficar cheinho de gente. Gente vinda do Arnipó, Manga-debaixo, Santo Amaro, Barra do Tarrachil, Belém de São Francisco, Rodelas, Jatinã e Saco. Suas enormes peixeiras de doze polegadas ou mais, eram guardadas no quarto do dono da casa Sr. Luís, que ficava de posse das chaves e do cadeado, porém, às vezes, algumas delas passavam despercebidas.

Com sua gaita de taquara Sr. José, e Sr. Manelito no chocalho, Rosana nas sementes dentro de uma lata de leite ninho, e Evaneide e Maria de Zé Pechincha nos reco-recos, puxavam, euforicamente, os primeiros cânticos e eram imitadas por Adelina, Deise e Zefa de Zé João. E a roda ia crescendo e se inflamando cada vez mais, aumentando o número de pessoas na pândega e a animação era geral. Pelos arredores escorados num toco Zé Pequeno e sua namorada Adelaide do Cachauí com a sua cintura fina de pilão, toda faceira se preparava para rodopiar ela era uma das que recebiam o tal santo Zé Quirino. Mais para o lado, inebriadas, Talita namorava e se atirava seminua nos braços de Antoniel de Zé Barriguinha, aquele que futuramente viria a ser o seu esposo. Esboçava que iria rasgar a roupa e ficar nua, e alguns até atiçavam-na, porém, o seu namorado bronco procurava detê-la.

Muita gente estranha fora chegando e entrando na patuscada, ninguém sabia ao certo quem era quem, nem de onde eram. Mas já que era para animar valia qualquer coisa. Assim a criançada um pouco mais afastada contemplava o cenário do sagrado e profano. Mais profano do que sagrado, a promiscuidade que sobressaía sob o efeito daquele chá aromático. Faíscas que saiam da fogueira dos olhos dos dançantes eram como labaredas que lambiam a palha de arroz que cobria a latada. Aqueles dançantes, como cães, lambiam suas donzelas sonsas, e do céu até as estrelas candentes, afoitas, mas um tanto envergonhadas, apareciam repentinamente e se escondiam no horizonte. O rastro luminoso tocava a ponta dos dedos das crianças e a luz desaparecia na crista da serra do boi morto, lá para os lados de Salgueiro. Tudo era ilusão, como em sonhos, uma loucura inimaginável. Pura magia, a mais fascinante ficção, energia pairava no ar com o cheiro acre do suor dos matutos. Os pés deles eram como pés de pilão tronco de baraúna. Pisavam forte no chão, em volta da fogueira. A casa estremecia e balançava como canoa sob as ondas barulhentas dos entoamento dos cânticos. Os homens tombavam de um lado para outro, chegando quase a beijar o poeirento chão. E num solavanco se aprumavam outra vez, se quebravam para trás quase caindo e em seguida com movimentos de umbigada, iam para frente e para trás, para frente e para trás. As mulheres deliravam e os entôos aumentavam. Era o ápice do folguedo; Tum, Tum, Tum... Tum, Tum rum... Tum, Tum. Era a batida dos tambores sem parar. O surdo de couro de gato do mato, nas mãos de Ribamar, que se achava o máximo empunhando o instrumento, repicava e repicava. A essa altura, lua também envergonhada procurava se esconder na curvatura geóide, as estrelas deram lugar a mais densa escuridão e em suas mentes a obnubilação. Alguns já entoavam cânticos incompreensíveis, pelo estado de embriagues. E, de fato, não era para menos a cachaça rolava a solta. Continuavam cantando e chamando alguém que as crianças ignoravam quem fosse o tal caboclo ROSSÉKRYNO, caboclo ROSSÉKRYNO, caboclo ROSSÉKRYNO.

A criançada se divertia. Continuavam com suas brincadeiras inocentes, como se nada estivesse acontecendo, mas observavam quase que distraidamente ao procedimento daqueles adultos e riam e às vezes procuravam imitá-los.

Lá das bandas da casa Seu Didon chegou o vaqueiro Vitorino o mais rápido que pode para avisar a todos que o caboclo Zé Quirino havia destruído toda a lavoura de mandioca do velho. Era para o pessoal parar com esse negócio de dançar essa tal roda. O Velho, que era homem branco, não dava crédito aos costumes dos negros e índios. E esse negro, para o qual dançavam, foi no passado remoto torturado até a morte no paredão e no tronco daquela casa grande. Seu espírito precisava libertar-se e para isso os negros dançavam. Acreditavam que com isso acalmavam aquele e espírito e manteriam suas roças protegidas.

“De repente o balaio virou”, isso era uma maneira de dizer que “O circo pegou fogo,” houve tremenda confusão, um balaio de gato.

A Tia preta, de cara, foi tomada pelo caboclo e foi seguida de Adelaide, haja homens para segurá-las, foi uma gritaria e um corre-corre dos infernos. A criançada a essa altura escondidas debaixo do girau de milho, continuavam a observar tudo direitinho. O som da Toré não parava um instante e a roda continuava.

Um novo cântico surgia. Assim, a música criada pelas possuídas, era dança emprestada dos negros que índios das tribos de Rodelas aderiram e rezava assim: Meter, meter!Meter, Meter!Meter, meter! Meter, met...”

Sabe se lá o que! Naquela escuridão, coisa estranha.

Alguns foram associando a letra aos acontecimentos. Alguns desconhecidos ficaram atônitos, sem entender o porque meter, meter, meter. Outros, desconhecendo mais ainda o significado de meter, meter, meter, meter, meter. Pensado que se tratasse de meter a peixeira correram. Os mais assustados e embriagados correram cambaleantes para o meio do mato, propalando alto que se tratava mesmo de meter a peixeira. Sendo que alguns sabiam que em confusão dessas naturezas costumavam esfaquear alguém e até uns aos outros. Os brancos curiosos que estavam presentes na festança ao escutarem que se estavam falando em chá da cabeça de nêgo entenderam logo o seguinte: ”Ora, ora, se fizeram chá da cabeça de um negro, quanto mais não fariam da cabeça de um branco.” Foi um atropelo doido, foi aquela correria.

Lá pelas tantas da madrugada alguém conseguiu puxar a música direito e rezava: ”Meter, meter, meter, meter o pé na botina e quando for pro meu roçado o bicho vai pegar e o caboclo Zé Quirino vai nos ajudar”, e repetiam-se várias vezes. Mulheres traziam cuias cheinhas de marí quentinhas e cuités de chá de cabeça de nêgo e distribuíam para os presentes. Os embriagados cada vez mais aumentavam, mas não perdiam o ritmo.

Pela manhã no terreiro eram só cascas, pedaços de chinelos e correias de alpercatas, e até peças íntimas, alguns homens e mulheres bêbados caídos semi-nus pelos cantos.

Os furados foram levados para o Hospital Dr José Alventino Lima em Belém do São Francisco e o velho cirurgião do povo, Dr Lima tratava de costurá-los e deixá-los novinhos, prontos para no ano que vem.

Até outro dia, quando durar a festa. Quando numa noite no telhado da velha casa de taipa cair a lua cheia. E do terreiro limpo, subir a poeira nos calcanhares daqueles pés, e o trovão das canções de rogos subir bem alto, nos bancos da imaginação espalhados pelo terreiro de suas mentes, a crença imortal anunciar-se-á outra Toré. No peito deles incendiará uma nova fogueira, a Toré vai continuar e o caboclo Zé Quirino continuará assombrando o homem branco que não crê na tradição histórica dos negros e índios da Canabrava a festa continuará uma vez por ano.

TORÉ

Naquele dia as nuvens se esconderam por detrás da capa da noite e as estrelas ousadamente se exibiram nuas. Até que a lua botou seu olho por detrás dos montes no horizonte de Rodelas, e a tudo observava descaradamente. Ela foi aparecendo sutilmente passando uma borracha nas sombras e sem pudor se estabeleceu acima da cumeeira da casa de taipa da tia preta. Lá fora haviam espalhadas pelo chão esteiras de palha de bananeira, bancos de caraíba e tamboretes de umburana.

Uma grande fogueira também estava acesa ali. Lá dentro no fogão à lenha uma grande panela de barro cozinhava marí, outra fazia chá aromático alucinógeno de uma erva conhecida como cabeça de nêgo, que com cachaça era servida aos participantes. O terreiro começava ficar cheinho de gente. Gente vinda do Arnipó, Manga-debaixo, Santo Amaro, Barra do Tarrachil, Belém de São Francisco, Rodelas, Jatinã e Saco. Suas enormes peixeiras de doze polegadas ou mais, eram guardadas no quarto do dono da casa Sr.Luís, que ficava de posse das chaves e do cadeado. Mas que às vezes algumas delas passavam despercebidas.

Com sua gaita de taquara Sr. José, e Sr. Manelito no chocalho, Rosana nas sementes dentro de uma lata de leite ninho, e Evaneide e Maria de Zé Pechincha nos reco-recos, puxavam euforicamente os primeiros cânticos e eram imitadas por Adelina, Deise e Zefa de Zé João. E a roda ia crescendo e se inflamando cada vez mais, aumentando o número de pessoas na pândega e a animação era geral. Pelos arredores escorados num toco Zé Pequeno e sua namorada Adelaide do Cachauí com a sua cintura fina de pilão, toda faceira se preparava para rodopiar ela era uma das que recebiam o tal santo Zé Quirino. Mais para o lado, inebriadas Talita namorava e se atirava seminua nos braços de Antoniel de Zé Barriguinha, aquele que futuramente viria a ser o seu esposo, ela esboçava que iria rasgar a roupa e ficar nua, e alguns até atiçavam-na, porém o seu namorado bronco procurava detê-la.

Muita gente estranha fora chegando e entrando na patuscada, ninguém sabia ao certo quem era quem, nem de onde eram. Mas já que era para animar valia qualquer coisa.

Assim a criançada um pouco mais afastadas contemplavam o cenário do sagrado e profano. Mais profano do que sagrado, a promiscuidade que sobressaía sob o efeito do chá. Faíscas que saiam da fogueira dos olhos dos dançantes eram como labaredas que lambiam a palha da latada. Aqueles dançantes como cães lambiam suas donzelas sonsas, e do céu até as estrelas candentes, afoitas mas um tanto envergonhadas apareciam repentinamente e se escondiam no horizonte. O rastro luminoso tocava a ponta dos dedos das crianças e a luz desaparecia na crista da serra do boi morto, lá para os lados de Salgueiro. Tudo era ilusão, como em sonhos uma loucura. Pura magia, a mais fascinante ficção, energia pairava no ar.

Os pés deles eram como pés de pilão tronco de baraúna. Pisavam forte no chão em volta da fogueira. A casa estremecia e balançava como canoa sob as ondas barulhentas dos entoamentos dos cânticos. Os homens tombavam de um lado para outro chegando quase a beijar o poeirento chão. E num solavanco se aprumavam outra vez, se quebravam para trás quase caindo e em seguida com movimentos como numa umbigada iam para frente e para trás. As mulheres deliravam e os entôos aumentavam. Era o ápice do folguedo; Tum, Tum, Tum, Tum, Tum rum, Tum, Tum. Era batida dos tambores sem parar. O surdo de couro de gato do mato, nas mãos de Ribamar, que se achava o máximo empunhando o instrumento repicava e repicava. A essa altura lua também envergonhada procurava se esconder na curvatura geóide, as estrelas deram lugar a mais densa obnubilação.

Alguns já entoavam cânticos incompreensivos, pareciam embriagados. E de fato não era para menos a cachaça rolava solta. Continuavam cantando e chamando alguém que as crianças ignoravam quem fosse: Era o tal caboclo ROSSÉKRYNO,caboclo ROSSÉKRYNO, caboclo ROSSÉKRYNO.

A criançada se divertia continuavam com suas brincadeiras inocentes, como se nada estivesse acontecendo, mas observavam quase que distraidamente ao procedimento daqueles adultos e riam e às vezes procuravam imitá-los.

Lá das bandas da casa Seu Didon chegou o vaqueiro Vitorino o mais rápido que pode para avisar a todos que o caboclo Zé Quirino havia destruído toda a lavoura de mandioca do velho. Era para o pessoal parar com esse negócio de dançar essa tal roda. O Velho que era homem branco não dava crédito aos costumes dos negros e índios. E esse negro para o qual dançavam foi no passado remoto torturado até a morte no paredão e no tronco daquela casa grande. Seu espírito precisava libertar-se e para isso os negros dançavam. Acreditavam que com isso acalmavam aquele e espírito e manteriam suas roças protegidas.

“ De repente o balaio virou”, isso era uma maneira de dizer que “O circo pegou fogo” houve tremenda confusão.

A Tia preta de cara foi tomada pelo caboclo e foi seguida de Adelaide, haja homens para segurá-las, foi uma gritaria e um corre-corre dos infernos. A criançada a essa altura escondidas debaixo do girau de milho, continuavam a observar tudo direitinho.

O som da Toré não parava um instante e roda continuava.

Um novo cântico surgia, assim música criada pelas possuídas, uma dança emprestada dos negros e índios das tribos de Rodelas rezava assim:

Meter,meter!Meter,Meter!Meter,meter!Meter,met...”

Sabe se lá o que! Naquela escuridão coisa estranha.

Alguns foram associando a letra aos acontecimentos. Alguns desconhecidos ficaram atônitos sem entender o por quê meter, meter, meter.

Outros desconhecendo mais ainda o significado de meter, meter, meter, meter, meter. Pensado que se tratasse de meter a peixeira correram. Os mais assustados e embriagados correram cambaleantes para o meio do mato, propalando alto que se tratava mesmo de meter a peixeira. Sendo que alguns sabiam que em confusão dessas naturezas costumavam esfaquear alguém e até uns aos outros.

Os brancos curiosos que estavam presentes na festança ao escutarem que se estavam falando em chá da cabeça de nêgo, entenderam logo o seguinte: ”Ora,ora, se fizeram chá da cabeça de um negro, quanto mais não fariam da cabeça de um branco.” Foi um atropelo doido, foi aquela correria.

Lá pelas tantas da madrugada alguém conseguiu puxar a música direito e rezava assim:

“Meter,meter,meter,meter o pé na botina e quando for pro meu roçado o bicho vai pegar e o caboclo Zé Quirino vai nos ajudar”, e repetia-se várias vezes. Mulheres traziam cuias cheinhas de marí quentinhas e canecas de chá de cabeça de nêgo e distribuíam para todo pessoal. Os embriagados cada vez mais aumentavam, mas não perdiam o ritmo.

Pela manhã no terreiro eram só cascas, pedaços de chinelos e correias de alpercatas, alguns homens e mulheres bêbados caídos semi-nus pelos cantos.

Os furados foram eram levados para o Hospital Dr José Alventino Lima e o Dr Lima velho cirurgião do povo tratava de costurá-los e deixá-los pronto para ano que vém..

Até outro dia quando durar a festa. Quando numa noite no telhado da velha casa de taipa cair a lua cheia. E do terreiro limpo subir a poeira nos calcanhares daqueles pés, e o trovão das canções de rogos subir bem alto, nos bancos da imaginação espalhados pelo terreiro de suas mentes, a crença imortal anunciar-se-á outra Toré. No peito deles incendiará uma nova fogueira, a Toré vai continuar e o caboclo Zé Quirino continuará assombrando o homem branco que não crê na tradição histórica dos negros e índios da Canabrava a festa continuará uma vez por ano.

NATINHO SILVA
Enviado por NATINHO SILVA em 25/05/2011
Reeditado em 21/12/2014
Código do texto: T2992364
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