E se fosse você?

-Oi amor! E o plantão? Tudo tranqüilo?

-Que barulho é esse? Nossa! Quase não estou te ouvindo... Onde você está querido?

-Na “Tonight”, a balada aqui está bombando...

-Poxa, Zeca! Eu ralando no plantão do Pronto Socorro e você aí, cara... Na balada? Tenha dó, né...

-Calma, Nanda... Calminha aí! ‘To acompanhando a Cris... Tua cunhada, minha irmã... Vou deixá-la aqui com as amigas dela e vou passar aí no hospital para te dar um beijo... Sabe como é, né... Com essa violência... Medo de assalto... Ela pediu para eu acompanhá-la.

-Ainda bem, né! Já estava com gana de arrancar teus olhos... Era só o que faltava eu deixar meu gato, leve, livre e solto com tantas predadoras à espreita por aí...

Com um leve sorriso, Zeca desligou o celular, despediu-se da irmã e das amigas e saiu da casa noturna. No estacionamento acionou o controle para destravar o carro e foi quando nesse exato momento sentiu uma espécie de tranco na parte lateral da cabeça.

A bala entrou na caixa craniana e se alojou no meio da massa encefálica. A polícia ali perto trocava tiros com um grupo de assaltantes, uma das balas perdidas atingiu Zeca no instante em que ele se inclinava para abrir a porta do carro.

- o –

A ambulância entrou no pátio do hospital a toda velocidade. À frente do hospital a equipe de emergência, entre eles Nanda, aguardava os paramédicos.

Horas depois foi declarada a morte cerebral de Zeca. Sua namorada, Nanda, entrou em desespero, não bastava sua irmã gêmea, Kari, está às portas da morte com uma insuficiência hepática grave, agora essa, o namorado... Namorado, não, noivo. No dia anterior o namorado a tinha pedido em casamento. Ela ainda nem estava acreditando... O Zeca, pegador geral... Queria casar com ela... Tinha passado a noite nas nuvens... No Nirvana... Agora adentrava as portas do Hades.

- o –

Solano, um jovem médico da equipe do hospital, alucinadamente apaixonado e casado com Kari, irmã de Nanda, um cara que ela conheceu no período de residência, chamou-a para conversar na Sala dos Médicos.

Ainda abalada com tudo que estava acontecendo ela sentou-se à frente do colega e aguardou perdida em seus pensamentos, ele iniciar o assunto.

-Desculpe Nanda, mas nestas horas difíceis a gente tem que ter espírito pragmático... O Zeca, por mais que a gente sofra, não tem jeito, ele clinicamente, já se foi... Vamos chorar... Sofrer... Sentir muitas saudades... Mas a vida tem que continuar... Nanda, nos primeiros exames, nos exames preliminares... Foi constatada a compatibilidade do Zeca com a Kari, os dois são “O-“, é um bom indício... Você sabe o que significa, não é?

-Ninguém... Absolutamente ninguém, vai encostar a mão no Zeca para retirar qualquer coisa dele... Entendeu Solano? Ninguém!

-Nanda...!!!! É a tua irmã... Ela está morrendo... Se nada for feito tem pouco tempo de vida, uns três, quatro meses, quem sabe, talvez um semestre... E o Zeca, pelos primeiros exames, é compatível, Nanda! Nanda..!!!. Nanda...!!! Levanta a cabeça, olha para mim... Olho no olho, NANDA! Uma parte do Zeca vai continuar viva... Na Kari... Na nossa Kari, Nanda!

-Desculpe... Solano! Eu não posso... Não posso, entende? Eu sei...!!! Eu sei...!!! Eu também sou médica... Eu sei que temos deficiência de doadores... Acontece que eu não suporto a idéia de retalhar o Zeca... Não o Zeca... Será que dá para entender? O Zeca, não... Mil vezes não... NÃO!!!

-Nanda! Os pais dele também não querem... Concordam com você... Acontece, Nanda! Você!!! Somente você... Vai conseguir demovê-los dessa idéia fixa que também te contaminou... Nanda... Lembra das nossas conversas nas horas de lanche, no “happy hour” quando a gente lamentava os parentes não autorizarem as doações? Solidariedade... Faltava solidariedade... A gente até criticava a falta dela... Nanda! Olha pra mim... Vou deixar você sozinha, para refletir melhor, ok? Nanda, não esqueça! A tua irmã, a Kari, precisa do Zeca, de você, de mim, de nós... Nanda, eu preciso da Kari... Nanda, eu não posso perder a Kari... Agora não... A doença dela foi tão repentina, tão inesperada... Eu não posso perder a Kari agora... Não agora! Primeiro eu tenho que me acostumar com a idéia... Nanda, por favor, reflita bem.

Os sentimentos de Nanda turbilhonavam, emoções contraditórias se embatiam numa tsumani avassaladora abalando suas mais sólidas convicções. Nesse turbilhão de emoções, solidariedade e egoísmo, medo e coragem, altruísmo e negação, passividade e combatividade se digladiavam em seu âmago.

Nanda se recolheu à toalete e lá, chorou convulsivamente. A lembrança viva de Zeca, todo nervoso, o que não era característica dele, pedindo-a em casamento, era uma tortura atroz.

Quando Nanda com os olhos vermelhos e inchados retornou à Sala dos Médicos encontrou o cunhado no mesmo lugar em que o tinha deixado. A diferença é que Solano, um cara que se vangloriava de sempre manter o absoluto controle sobre qualquer situação, agora olhava fixamente para a parede à sua frente, os seus dedos tamborilando os joelhos sem parar enquanto movimentava o tronco para frente e para trás como se estivesse em transe profundo, catatônico.

-Solano! Solano, querido! Vou conversar com os pais do Zeca... Vou tentar convencê-los...

Lentamente o rapaz moveu os olhos na direção da cunhada, esboçou um sorriso forçado e disse:

-Nanda, tem mais uma coisa...

-O que foi Solano? Tem mais alguma coisa pior do que tudo o que já aconteceu?

-Tem sim, Nanda!

-Fala!

-Os exames preliminares também indicaram um dado horrível... A respeito disso é preciso que você mantenha a calma, a serenidade.

-Fala homem... Que dado é esse? Horrível?

-O Zeca... O Zeca era... Era...

-Era o quê...? Cristo do céu... Fala homem!

-O Zeca era... Era... Era soropositivo!

Se um raio tivesse caído em cima de Nanda não teria produzido um efeito maior. Nanda sentiu uma insuportável opressão no peito, a cabeça rodou... Sem forças para caminhar até a cadeira mais próxima, preferiu sentar-se ao chão.

Ficou lá, no piso frio, sem saber onde colocar as mãos, olhando para o nada.

Apalermada, sem chão, sem teto, sem nada, ficou lembrando as muitas noites de amor louco, lascivo, ardentes, passadas com o Zeca.

Ainda aérea e perdida no tempo, olhou para Solano numa interrogação muda.

-Exato! Provavelmente, Nanda, você também pode ser soropositiva!

-E agora, o que é que eu faço? Solano, pelo amor de Deus, o que é que eu faço?

-Lembra da tua irmã, a Kari!

-A Kari?

-O transplante, lembra? Os pais do Zeca... A autorização...

-Solano, o protocolo não permite doador soropositivo.

-Eu sei Nanda... Eu já falei com a Kari... Ela concorda...

-A equipe vai querer cumprir o protocolo à risca... Não vai concordar...

-Nanda, esse dado... Que ele era soropositivo... Eu omiti para a equipe... Eles não sabem que eu alterei as informações do sistema.