MUTAÇÃO SOCIAL

Ele vinha todos os dias puxando sua carrocinha. De manhã à tardinha. Rua por rua ele passava catando todo tipo de coisas ditas recicláveis.

Lá vinha Seu Eusébio, barba mal cuidada, descalço, puxando um pouco de uma perna, dois filhos pequenos tão magrinhos que mais se pareciam dois gravetos. Coitadinhos!

Dentro da carrocinha eles acompanhavam a triste realidade de seu pai.

Olhando mais de perto Seu Eusébio senti um arrepio acompanhado de um remorso que chegou contrair a boca do estômago.

Eu também fazia parte de uma grande parcela da sociedade que não possuía lá muita coisa; mas entre nós a diferença era abismal.

Cumprimentei Seu Eusébio e procurei saber algo sobre ele. Indaguei-lhe, meio que de supetão para que ele fosse o mais sincero possível: tenho observado o senhor dia após dia passando aqui na rua, puxando sua carrocinha, ora com seus filhos, ora sem eles e não querendo invadir seus pensamentos poderia dizer-me qual é seu sonho? (Todo ser humano tem um sonho, Seu Eusébio também deveria ter um).

Ele levantou seu olhar sofrido e respondeu: para uma pessoa como eu não é permitido ter sonhos.

Ainda que eu pudesse ter um como iria realizá-lo? Para meu entendimento chegar ao final de cada dia vivo, com a carrocinha cheia de entulhos, é uma grande graça.

Fui mais adiante enquanto dava-lhe uma doação e perguntei–lhe: e seus filhos, qual a sua perspectiva para eles? Ele parou por uns instantes, seus olhos vagaram no horizonte e encheram-se de lágrimas e disse-me: eles fazem parte da minha miséria, muito pouco posso contribuir para que a vida deles seja melhor. Diante de uma vida tão difícil que levo digo para não seguirem meus passos. Não sou exemplo a ser seguido.

Luto com as forças que tenho para mostrar-lhes que existe outro caminho. Tudo o que posso oferecer-lhes é a minha vida. Mas me parece que ela não vale uma caixa de papelão que eu busco todos os dias. E com aquele olhar distante que só os excluídos têm falou: sabe minha senhora, Jó já dizia “nesta guerra em que me encontro todos os dias de minha vida espero que se dê a minha mutação”. Faço delas as minhas palavras. E finalizou dizendo - tire as suas conclusões.

Fiquei paralisada, senti uma tristeza visceral e disfarcei olhando para o céu.

Este é Seu Eusébio, carroceiro, pai de, no mínimo, dois filhos. Ele faz parte da mutação social.

É uma legião de Eusébio varrida, excluída, maltratada, abandonada pela sociedade produtiva.

A mutação social criou sua própria identidade. Sua lei é imperativa, cruel, devastadora.

Ela não permite sonhos, o amanhã não existe.

A sobrevivência se dá pelo “lixo”. São as sobras das sobras que atrapalham os mais favorecidos, virando “recicláveis”. Este é o único meio que milhares de pessoas têm para não morrerem de fome.

Voltei a olhar para Seu Eusébio e constatei uma realidade aterradora: a mutação social é a face mais perversa de uma sociedade.

Para quem vive dentro dela não há mais saída digna. É a destruição do homem como ser humano.

E dizer que hoje as portas da mutação social estão amplamente abertas; sua base vai se alargando engolindo cada vez mais Eusébios.

Despedi-me dele e tudo que pude dizer foi: vai com Deus Seu Eusébio.

Voltei a olhar para o céu disfarçando uma lágrima que teimava em cair. Tentei colocar meus pensamentos em ordem, mas eles continuaram confusos em minha mente.

Constatei que o ser humano tem uma força extraordinária quando se trata de sua sobrevivência, mas ela está restrita as suas necessidades mais básicas.

Na mutação social a dignidade deixa de existir porque o ser humano se torna “um nada”, tão somente um catador de lixo que ninguém quer ver.

Livia Zoé
Enviado por Livia Zoé em 26/11/2006
Código do texto: T301975