Fauna Urbana

Sexta-Feira, fim de tarde, algo assim... Entre cinco e seis da tarde no Mirante Um, barzinho localizado nas barrancas do Rio Madeira, em Porto Velho, dois amigos matavam um chopinho estupidamente gelado e tiravam o gosto com caldinho de “pato-no-tucupi”. Em volta da mesa, muitas pessoas também matavam um chopinho gelado acompanhado da brisa fresca que o remanso do rio, àquela hora, cor de ouro com a aproximação do pôr-do-sol, que, esplendidamente se aproximava das copas das árvores do outro lado do rio, lançava em suas barrancas para gáudio dos fregueses que reclamavam daquele mormaço do fim do dia.

Mais adiante da mesa da dupla de amigos, perto da grade de proteção, várias mesas ajuntadas estavam apinhadas de “gatas” de todos os matizes: louras, morenas, mulatas, tinha até duas nisseis, ou chinesas, ou coreanas, ou... ou... Sabe-se lá de que nacionalidades. Com as obras das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, a cidade fora invadida por gente de todos os cantos do Brasil e do mundo. O certo é que elas riam e conversavam, todas ao mesmo tempo. Praxedes, um dos amigos da dupla que observava o grupo de mulheres se aproximou da mesa e falou a guisa de cumprimento:

-Bela visão, né?

-Também acho... Só tem gata, mermão!

-Estava me referindo ao pôr-do-sol.

-Eu também!

-Cara! Essa mulherada faz mais barulho que periquito em barreiro de beira de rio.

-Pode ser... Pode até ser... Mas que é um colírio para os olhos... Isso é... Né não?

-E aí, Praxedes, o que é que manda? Tudo beleza?

-Agora, melhor ainda... Com esses periquitos lindos, aí ao lado... Vou ficar de olho, quem sabe um deles não vem pousar do meu poleiro!

-Vai esperando...

-(...)

-Eu estava falando aqui para o Carlos que a fauna urbana é um espécime bacana de se observar... Quer ver? Dá só uma olhada em volta.

-‘Tô olhando, e daí?

-Cara! Não estás vendo não? Presta atenção... Ali, perto da grade de proteção temos um bando de periquitos em alegre algaravia. Mais à frente, temos um jaburu.

-Jaburu?

-Claro! Dá uma olhada naquele sujeito ali... Naquela mesa perto da mangueira... O cara está ali, parado, em pé, parecendo um dois de paus... Na verdade, parece um jaburu... Todo vestido de preto, pernas finas, barrigudo... Segurando o copo de cerveja e olhando para o nada... Não lembra um jaburu?

-Éééé! Sabe que tu tens razão! O cara lembra um jaburu... E aquelas duas senhoras ali... Gesticulando e falando alto, as duas pintadas, maquiagem carregada... Não lembra duas araras?

Todos olhando para as senhoras e gargalhando.

-Caramba! E não é que você tem razão... Dá uma olhada nas blusas delas... Mais coloridas que penas de araras velhas...!!!

Gargalhadas e goles de chope para molhar as gargantas secas.

-E o gordo ali, perto da parede do bar?

-Que gordo?

-Ali, cara! Perto do balcão!

-Sim! O que é que tem?

-Lembra o quê, o cara?

-Um peixe-boi... Olha só como as orelhas são pequenas... E os beiços...? Amigo, os lábios do cara... É cada lapa de beiço!!!

Um deles segurando o braço do outro.

-Meu amigo... E aquela gatinha ali...

-Onde?

-Ali, cara! Tu és cego ou quê?

-Onde, cara?

-Ali... Toupeira!!!!

-Tô vendo...! E aquela? Que bicho que é?

-Beija-flor! Não... Não... Beija-flor, não! Ave do Paraíso!

-Pois é...! Fica só olhando... Ela não é para o teu bico... Dá só uma olhada no velho que ficou na mesa olhando para a bunda dela... Babando... Te lembra o quê?

-Uma jibóia...! Uma jibóia olhando para um passarinho... Uma jibóia rica... Olha só a quantidade de ouro que o cara tem pendurado nele... Anel, pulseira, corrente... E os dentes? A boca do cara parece uma joalheria.

-E tu, cara?

-O que é que tenho eu?

-Parece um mandubé... Morrendo de inveja...

Os três ainda soltando grandes gargalhadas pediram ao garçom para trazer mais uma rodada de chope.

O garçom, solícito, serviu os chopes, perguntou se aceitavam mais três caldinhos de tucupi. Responderam que não, que ele trouxesse “isca-de-peixe”... De preferência, de filé-de-dourado... Bem crocante, e que não se esquecesse do limão e da pimenta murupi. O garçom saiu flanando em passos leves.

-E esse garçom?

-O que é que tem o garçom?

-O jeitão da figura...!!!

-Uma libélula!

-Libélula, não... É viadaço mesmo!

-Cuidado, cara! Chamar alguém de “viado” agora é crime...

-Não é “viado”!

-Como não é viado? O cara rebola, fala fino e revira os olhos... Para mim é viado e viado é!

-É veado!

-Veado? E agora mais essa? Viado, veado... Qual a diferença? Não é tudo a mesma coisa?

-Não!

-Como não?

-É uma questão de pronuncia, gramática, ortografia... Algo assim... Entende?

-Não!

-Como não?

-Pensei que era uma questão de preconceito!

-Também!

-Tá certo... Tá certo... Se não pode chamar nem de “viado” e nem de “veado”, então como é que vai se chamar o cara? O malemolengo?

-Não chama!

-Como não chama???

-Respeita, ora! Respeita a opção do cara!

-É ruim, hem?

-Ta! E falando sério... Qual a forma correta de se referir ao... ao... malemolengo, baitola, chibungo, viado... Quero dizer: VEADO?

-Com respeito! Respeitando a opção sexual de cada um...

-Tempos modernos, novas regras... Antigamente era mais fácil... Puta era puta... Menino era menino e baitola era baitola como diz o Falcão.

-Moçada, vamos deixar esse assunto... Digamos... Um tanto delicado pra lá... Vamos voltar ao que interessa, ou seja, putaria, mulher e a vida dos outros...

E rindo disfarçadamente: E aquela coroa ali, é o quê?

-Loba!

-Loba?

-Claro! Olha só o jeitão dela quando passa um garotão por perto da mesa dela!

-Tô vendo! O que é que tem?

-É cego é? Olha só como ela passa a língua pelos lábios... Olha lá... Olha lá, ajeitou os peitos... Essa coroa ta a fim de um programa. Olha lá... Um garotão encostou... Olha os olhos dela... Estão brilhando... E as narinas? As narinas estão mais dilatadas que a tua barriga, Praxedes...

-Aposto que já está toda úmida.

-Quero morrer teu amigo... Que língua, hem?

-Me digam uma coisa... E a gente?

-O que é que tem a gente?

-A gente se enquadra em qual categoria de bicho?

-Como assim?

-Que dificuldade para entender, hem?

-Desenha, que ele entende direitinho. (risadas geral)

-Então, vou desenhar... Fica esperto... Nós não estamos aqui há um tempão classificando as pessoas por categoria de bicho... Sacaneando todo mundo? Então? E nós? Qual a nossa classificação? Em qual gênero animal nós nos classificamos?

Um deles soltando uma gostosa gargalhada.

-Gralhas! Três gralhas que não têm o que fazer... Garçom! Ô garçom! Mais três chopes e outro tira-gosto... Desta vez capricha! Presta atenção: é “capricha”... Não é “prá bicha”... O outro que você trouxe não estava bem crocante.

E olhando para os demais:

-E aí? Vamos continuar com a sacanagem? E o loirinho ali, todo agitado, levando uma bronca do coroão na frente dele? Vamos classificá-lo em qual categoria?

-Otarius abestadus citadinus.

O bar inteiro olhou para a mesa dos três sem entender o motivo de tantas gargalhadas.

- (...) – (!!!) – (???) – (...) !!!... ???...