MEMÓRIAS DE UM ERMITÃO CAPIXABA

Faz-se necessário afirmar que cabe ao momento relembrar daqueles tempos de calmaria e tranqüilidade. No presente, a vida está cada dia mais complicada. Mas lembro que soubemos aproveitar bem cada momento, cada instante da felicidade que tínhamos naqueles dias de torpor.

Era verão de 1973, saudoso e inesquecível, estávamos finalmente concretizando nossos velhos planos de férias, um amigo que nos deixara ainda muito moço, sempre contava belas histórias relativas aos momentos gozados na ilha de Pirajucaia, a 250 milhas náuticas da costa capixaba.

Imbuímo-nos de também sentir no rosto aquele minuano que soprava do leste, vindo diretamente do continente africano, que ao chegar à ilha, ainda de mata virgem, causava um leve rebuliço entre as folhas que permeavam em abundância à encosta do imponente monte chamado por nós de Pico das Veredas Azuis.

Ao atracarmos à ilha em nosso catamarã, pudemos ouvir o piar dos albatrozes que cortejavam suas fêmeas aos pés do Pico das Veredas Azuis, pois era época da cópula. Decidimos então, naquele instante, subir ao cume do encantador monte para poder lá de cima apreciar aquela vista que se apresentava quase que indescritível de tão bela que era. O reflexo do sol cintilava nas pequenas ondulações formadas pelo mar criando um brilho que ofuscava nossas já seduzidas vistas.

Enquanto preparávamos todo apetrecho necessário para a jornada avistamos ao longe um animal que, de tão belo, assemelhava-se a um anjo. Apareceu-nos naquele momento um tentilhão com sua penugem levemente esverdeada. Este tentilhão era especial. Mas somente este. Ao aproximar-se, pudemos ouvir o cantar da bela ave que traduzia em som tudo que era sentido por nós naquele momento.

Tal encontro inusitado deu-nos forças para encarar a empreitada que nos fora traçada pelo destino: subir o monte.

Tínhamos chegado cedo à ilha, estávamos ainda nas primeiras quando começamos a nos aventurar na traiçoeira subida que nos levaria a um lugar já supostamente maravilhoso.

Mais ou menos na terça parte da subida, estávamos suando em bicas devido ao exacerbado calor que fazia naquela hora do dia, quando nos deparamos com diversos arbustos de ervas julgadas por nós como tendenciosas. Colhemos um apanhado das mesmas para posteriormente fazermos um chá no momento em que atingíssemos nosso objetivo.

O cume era extremamente alto e quando finalmente conseguimos escalá-lo, nos congratulamos pelo feito e sentamos numa breve área plana cercada por turmalinas, e neste instante, o camarada apelidado carinhosamente por nós de Bozó, sacou de sua mochila um papiro, e começou a rascunhar algo que assemelhava-se a um desenho daquela paisagem límpida e retumbante, quiçá exuberante.

Passaríamos a noite naquele local inóspito. Sendo assim, construímos nossas tendas com materiais extraídos da própria mata e, ao fim da tarde, elaboramos uma fogueira, e um dos nossos, conhecido como Gusmão do Banjo Celeste, que trazia consigo um velho banjo, começou a nos presentear com canções típicas senegalesas. Sendo que esse mesmo camarada tinha em sua genealogia descendências africanas rústicas, oriundas de sua mãe.

Tínhamos, no caminho que havíamos percorrido, caçado um roedor de dimensões salientes, conhecido por preá. Após escalpelarmos o referido animal, fizemos um assado para que pudéssemos saciar nossa já incrível fome. Devoramos o quitute rapidamente como se tivesse sido preparado por um chefe francês.

Logo após esta intensa refeição, resgatamos da mochila aquelas ervas que haviam sido apanhadas pelo caminho que trilhamos e achamos por bem elaborar um chá, adicionando também ingredientes trazidos por nós do continente.

Aquele chá nos proporcionou uma paz e uma liberdade sem igual. Pudemos, a partir de então, admirar a paisagem, já em trevas, em forma de espiral.

Na manhã seguinte, arrumamos nossos apetrechos e decidimos descer para a orla e seguirmos de encontro ao catamarã. Éramos um sexteto. Voltamos para o continente em quinteto. No momento em que descíamos a colina fomos surpreendidos por um de nossos camaradas manifestando-nos o desejo de habitar, tal qual um ermitão, aquelas nobres terras que tivemos o deleite de desfrutar.

Em seu último pedido, o nobre colega, até então alcunhado por Durvalino Celestino Manfred Juraci, fez com que prometêssemos nunca mais retornar àquela porção de terra, pois ali ele viveria solitário pelo resto de sua existência, num estágio de reflexão constante e interminável.

Desde aquele dia, nunca mais vimos ou ouvimos falar de Manfred, somente lembrado em uma canção composta por Gusmão, intitulada por “Memórias de um Ermitão Capixaba”.

TrovadoresSaudosistas
Enviado por TrovadoresSaudosistas em 12/07/2011
Reeditado em 15/07/2011
Código do texto: T3089970
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