Das Vitrolas da Vida

Quando eu era pequena, um dos meus prazeres era ouvir música. Aos 10 anos, eu morava na casa da minha avó, onde também residia uma vitrola linda e hipnotizante. Ao perceber o meu fascínio pela coisa, minha família começou a me dar discos de presente. Ganhava discos da Xuxa, Balão Mágico e Carrossel. Ouvia todos e gostava muito.

Mas o meu verdadeiro fascínio era pelos discos da minha mãe: Guns N Roses, que fazia muito sucesso na época, era um dos meus preferidos. Queen, então, mudava o meu dia.

Eu adorava tirar o disco da capa e sentir as camadinhas de arranhões. Me perguntava como aquilo se transformava em música. Sentia o cheiro do vinil e achava aquilo horrível – como uma coisa tão malcheirosa pode produzir algo tão sagrado quanto a música? Mas, com o passar do tempo, ressignifiquei este cheiro. Quando o sentia em outras casas, outros momentos, logo era tomada pela emoção de ouvir música.

Eu botava os discos para tocar e me olhava em um vaso espelhado que ficava bem ao lado da vitrola. Cantava e observava o meu próprio reflexo, analisando meus traços infantis. Via felicidade, uma infância de quem não precisara trabalhar; a pureza daqueles que não tinham nenhuma obrigação, senão olhar-se infinitamente no espelho e cantar para ele.

Às vezes, eu me espantava com alguma expressão que eu mesma fazia. Cheguei a simpatizar pelas covinhas que apareciam nas minhas bochechas ao sorrir, e a odiar o meu nariz, que a natureza emprestou do meu pai, que emprestou do meu avô, que emprestou de algum outro senhor perdido pela antiga Polônia, ou até traumatizado pelo holocausto. Aquele vaso foi testemunha de uma pessoa que cresceu com os ouvidos grudados numa incansável vitrola.

Carregarei para sempre, na parte de veludo do meu coração, a primeira vez que eu chorei ouvindo música. Eu e a vitrola fomos as protagonistas deste drama, junto com o disco do Journey. Eu ouvia a música “Don’t Stop Believing” e pensava muito nas pessoas que eu gostava. O teclado melódico guiou meus olhos pelo vale das lágrimas fáceis, um lugar que eu visitaria muitas e muitas vezes depois. Foi estranho e inesquecível me ver chorando no vaso espelhado. Chorar sem ser por tristeza em perder um cachorrinho. Chorar sem ser pela dor de cair de bicicleta. Chorar porque algo era muito bonito.

Certa vez, era tarde da noite e as luzes de casa já estava apagadas. Algumas pessoas já estavam dormindo, como minha irmã, que tinha – e tem até hoje – sono fácil. E eu fazia geometrias na cama: tentava encontrar a melhor posição para os braços e para as pernas para dormir. Mas, nessas horas, o ideal é arrancar os membros e guardá-los em um caixote, ou levantar e fazer algo de interessante, até que o sono resolva pincelar nossas pálpebras. Resolvi levantar. Precisava da vitrola. Estava com sede de notas musicais.

Muito quieta, fui até a sala onde morava a vitrola. Mentalmente, já escolhia os discos que ouviria. As meias roçavam no antigo carpete, e meu sorriso era um segredo no escuro.

Ao acender a luz, gelei-me toda. Alguém estava sentado no mesmo lugar que eu, ouvindo algo muito baixinho na vitrola. Pensei que um ladrão estava levando embora o meu melhor hobby. Mas rapidamente compreendi: meu pai estava ouvindo música exatamente onde eu ouvia. E estava chorando.

Apressadíssima, apaguei a luz e voltei correndo para a cama. O coração era um pássaro assustado, preso entre as costelas. Eu nunca tinha visto meu pai chorar.

Quem acha bobo o fato de uma criança ter ficado profundamente chocada ao ver próprio pai chorando, é porque tem um pai francamente emotivo, ou nem tem pai. Pois eu conheci outro estado do choro, nesse momento: aquele em que estamos tão assustados, que esquecemos de chorar. Talvez tenha se sentido assim o homem que passeava por um lindo bosque, apreciando de todo o coração a beleza do universo, e deparou-se com Deus chorando por trás de uma árvore.

Peguei no sono seis horas depois, quando ouvi meu pai atravessando o corredor para ir dormir. Fiquei sem ouvir música por dezessete dias. Tinha medo do que poderia acontecer dentro de mim. A imagem do meu pai chorando não saía da minha cabeça. Sempre que eu resolvia deitar, e constatava a ausência do meu pai no quarto ao lado, eu me sentia como uma casa vazia e fria. Minhas luzes estavam apagadas. Tempos depois, descobri que isso se chamava mágoa. E descobri também que todas as casas vazias e frias podem ser recheadas por móveis, lareiras e moradores...

Eu nunca tive coragem de perguntar para o meu pai os motivos de seu choro. Eu tinha medo do que ele poderia dizer. Eu tinha medo de ser a culpada. Na época, achava inocentemente que minhas notas baixas poderiam fazer um adulto chorar no escuro.

Meu coração havia se tornado uma coruja de olhos acesos. Quando finalmente resolvi voltar a ligar a vitrola, já não ouvia música como quem se joga na piscina. Foram anos para reaprender a me soltar do trapézio e segurar-me nas mãos misteriosas da música. E o tempo passou, como sempre passa – como se fosse um trem veloz e fascinante.

Esses dias, enquanto dirigia, meio distraída, liguei o aparelho de som do carro. Sintonizei em uma rádio qualquer. Passava Journey. Sorri para mim mesma no retrovisor. Mas o sorriso é uma das portas de entrada para as lágrimas; a primeira gota caminhou pelo meu rosto. A música, inquestionavelmente, tem o poder de transportar-nos pelo tempo.

Voltei a verificar meu reflexo no retrovisor. As covinhas ainda estavam lá, a expressão sapeca… mas a marca de expressão, que deitou nos meus olhos, negava a inocência. Chorava pela perda.