Meras lembranças...

Na minha casa eu tinha tanta fartura. Meus filhos sempre estavam acompanhados de amigos que se deliciavam com as gostosuras que eu preparava todos os dias. E a mesa estava sempre posta, esperando qualquer estômago vazio que, por ventura, chegassem em casa.

Eu me casei com quatorze anos com um homem vinte anos mais velho que eu. Meu marido sempre foi muito bom pra mim e eu aprendi a amá-lo e respeitá-lo, mas ele morreu antes de completarmos quinze anos de casados, deixando-me sozinha com oito filhos. No início as coisas foram muito difíceis, pois eu nem sabia ler, saí da barra das calças do meu pai para as do meu marido. O que faria uma viúva, analfabeta, que somente sabia os afazeres domésticos e com oito filhos pra criar?

A resposta eu não tinha, somente rezava para que tudo se resolvesse da melhor maneira. Seis meses após o falecimento do meu marido, o dinheiro que ele havia me deixado já estava acabando e eu, apesar de ter somente 28 anos, já estava com os cabelos bastantes brancos, tamanha preocupação que me assolava. Porém, até aí, não havia faltado nada pras crianças, mas até quando? Eu não sabia responder. E foi numa tarde como qualquer outra, que uma senhora, já idosa, passou mal em frente da minha casa e eu a socorri, dei água e servi um café com bolo de mandioca que eu tinha acabado de fazer. E ela, deliciada com aquele bolo, sugeriu-me que fizesse meus quitutes pra vender, pois eram muito bons. E eu acreditei no que ela disse, contei o restinho de dinheiro que ainda me restava, comprei o que precisava para começar, pedi um anúncio na rádio e as encomendas começaram a chegar.

No início eu fazia tudo sozinha, entregava num carrinho que eu tinha guardado no celeiro e que eu mesma reformei. Depois as encomendas foram aumentando e eu precisei que minhas duas filhas mais velhas me ajudassem. Com a ajuda delas o serviço rendeu mais, mas as entregas eram por minha conta, pois eu não queria as crianças perambulando sozinhas pelas ruas. E assim quatro meses se passaram e meus quitutes só fazendo sucesso e as encomendas crescendo. Fui obrigada a contratar duas funcionárias pra me ajudar nos preparos e um rapaz pra fazer as entregas. E com, apenas um ano de venda, já tive que alugar um espaço para melhor atender meus clientes.

Foi assim que nasceu a "Quitutaria Flores", homenagem ao nome que herdei do meu marido. Conforme o tempo foi passando, eu construí um prédio, o primeiro com dois andares da cidade, meus filhos mais velhos já estavam estudando na capital, e eu sempre por aqui. A Quitutaria cresceu e pudemos abrir filiais em outras cidades, inclusive na capital. Mas eu já estava ficando velha, não trabalhava mais como antes. O que eu fazia era supervisionar. Os filhos, todos formados, assumiram a administração dos negócios, e eu fiquei por aqui, morando sozinha e recebendo uma mesada que eles me mandavam. Resolveram por bem vender o prédio daqui, já que lá pela cidade grande o lucro era maior, e seria menos um motivo para virem pra cá.

Aquilo me deixou muito triste, pois afinal, foi o primeiro prédio próprio, que eu construí com minhas mãos, com meu suor. E no dia da demolição, para construírem um condomínio de apartamentos no terreno, eu tive um troço. Disseram que foi um AVC, agravado pela forte emoção de ver o meu sonho, o meu suor, indo ao chão. Fui socorrida, levaram-me pra capital, fiquei no melhor hospital, melhorei, mas não voltei ao normal. Meu lado esquerdo ficou todo paralisado e eu não podia mais fazer nada por mim mesma, dependeria da bondade dos outros, dos filhos. Então, por unanimidade, eles decidiram me colocar nesse asilo, onde vivo há sete anos já.

Aqui eles me tratam muito bem, eu tenho amigos, as enfermeiras são ótimas, o lugar é agradável. Fui obrigada a construir uma nova família, a adquirir laços com pessoas estranhas, com pessoas que, como eu, foram desamarradas dos laços familiares contra a vontade. No começo os filhos me visitavam com frequência, mas isso foi ficando cada vez mais raro, e hoje, acho que já fiquei no passado, acho que tudo que vivi com eles e pra eles, não passa de meras lembranças...

Mi Guerra
Enviado por Mi Guerra em 24/07/2011
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