Cursor

O cursor piscava na tela, quase na mesma velocidade que os números do relógio que gritava para sinalizar o início de um novo dia. Sete horas, passou a noite inteira com, basicamente, nada. Havia escrito algumas linhas, mas não ficaram boas. Mesmo quando achava que estava produzindo, por algum motivo voltava para aquela tela.

Desistiu e salvou o arquivo em branco. Iria continuar o mesmo documento mais tarde, mesmo que não houvesse nada escrito nele, não perderia o título. Abriu as janelas do quarto e viu uma bela manhã de primavera. Os pássaros cantavam para agradecer o amanhecer e algumas pessoas já deixavam suas casas.

Remexeu os bolsos atrás de algumas moedas perdidas e nada. Teria de tomar o café em casa hoje. Era a terceira manhã seguida que fazia isso. Definitivamente precisava arranjar, e rápido, uma fonte de renda estável. Estava quase convencido que sua mãe estava certa. Escrever não dá dinheiro.

Rumou ao banheiro, lavou o rosto, barbeou-se sendo obrigado a encarar um fracassado pelo espelho, escovou os dentes bem lentamente e até pensou em um banho, mas cheirou-se e viu que não era tão urgente, ficaria para mais tarde, caso fizesse algo interessante durante o dia.

Foi à cozinha, procurou café, açúcar e um resquício de bolo ou pão que poderia ter esquecido na geladeira. Vasculhou todos os lugares possíveis e conseguiu gengibre, boldo, algumas cascas de cebolas e bolachas murchas. Pelo menos sua dieta forçada o afastava da gripe.

Aceitou esse desjejum pobre, trocou o pijama por roupas velhas que estavam ao lado da cama, pegou a mochila, jogou caderno, lápis e caneta dentro dela e se preparou para sair. Antes, passou um bom tempo a procura das chaves (que encontrou dentro da geladeira) e garantiu que todas as plantas recebessem água, inclusive as que já estavam mortas.

Precisou correr para não ser abordado pelo síndico, tropeçando nos últimos degraus e quase indo com a cara no chão. Seu Mané é uma boa pessoa, mas insiste em cobrar dívidas e falar de futebol, duas coisas que, de longe, estão entre os assuntos mais saturados. Os únicos momentos em que conversava com o velho era para garantir o café da tarde e conversar com a filha mais velha do homem.

Suas pernas o guiaram, sozinhas, até o parque que fica a algumas quadras de sua casa. Ali era o único lugar que podia ir para ver pessoas, já que odiava o tumulto das baladas e não conseguia ficar muito tempo sóbrio em bares.

O lugar estava mais movimentado que o normal. Parecia que uma orquestra iria tocar músicas nacionais no final da manhã e muitos pais aproveitaram para tirar seus filhos rabugentos da frente da televisão e os impor a alguma cultura.

Alheios a tudo isso, passeavam os típicos corredores, ciclistas e sketistas, disputando lugar com os cães, crianças e bolas que passavam de um lado para outro. E mesmo nesse cenário tumultuoso era possível ver alguns solitários com seus fones de ouvido.

Juntou-se a esses poucos, mas seu passatempo seria mais silencioso, uma leitura. Pegou um romance esquecido há dias no fundo da bagagem, selecionou com carrinho uma sombra sob uma bela árvore e se acomodou na grama úmida de orvalho. Havia escolhido um ótimo lugar, afastado da pista central.

Imergiu no sofrimento de um amor verdadeiro onde a vida tentava impedir o que o destino já havia escrito: a união eterna de um jovem casal. A última página do livro foi virada um pouco mais de uma hora depois. Parou para reparar o que acontecia a seu redor e viu que o parque estava vazio demais.

O que porque chegou a seus ouvidos assim que levantava. O maestro bateu com as batutas no suporte para partituras e iniciou uma ária de uma ópera muito famosa. Não sabia nada de música clássica e conhecia aquele movimento. Poucos conheciam a letra e muitos balbuciavam a melodia, tentando acompanhar o coro.

Foi vencido pela música e quando deu por si estava próximo ao palco, admirando os músicos. Pessoas que ocupavam cargos importantes em sua e realizavam sonhos. Era interessante ver a expressão de descaso ou esforço no rosto deles. Nenhum trabalho é fácil.

Outras horas se passaram e com elas vieram a fome. Como não houve nenhum movimento, a barriga reclamou para lembrar que era dia de feijoada no bar do seu Zé. Com muita preguiça e lentidão, levantou, jogou a mochila nas costas, limpou a roupa e pôs-se a andar.

A cidade começava a sofrer com o mormaço do meio-dia. Via-se engravatados de camisa aberta e jovens com garrafas na mão, tentando afastar o calor. Das ruas ouvia-se o bater de talher e a falação dos almoços em família e sentia-se o tempo andar mais devagar.

O bar estava com a clientela de sempre, a algazarra de sempre e a comida insossa de sempre. Incrível como ainda se dava ao trabalho de frequentar aquele lugar. Seu paladar deve ter perdido todo e qualquer critério que já teve um dia. Serviu-se e comeu sozinho na mesa que ocupava em todas as refeições. Alguns garçons ainda cumprimentavam e tentavam alguma conversa, mas na maior parte do tempo só podia-se ouvir o metal dos talheres batendo na louça dos pratos.

Pagou a conta e saiu sem a sobremesa, não podia desfrutar de tanto requinte. Procurou um telefone público e ligou para o irmão, iria visitá-lo. O aparelho tocou, tocou, tocou e... Nada. Seus planos foram rapidamente frustrados por uma ausência. E agora? O que faria de seu dia?

Depois de muito pensar, vasculhou nos bolsos por um papel mal dobrado que havia guardado há alguns dias. O encontrou, abriu e viu a lista de livros que ainda teria de ler naquele mês. Um hábito que perdurava há anos. Voltou a ameaçar o bilhete e jogou dentro da mochila, lá estaria mais seguro.

Rumou à biblioteca e a encontrou vazia. Puxou uma longa conversa com a bibliotecária, amiga de muitos anos. Fez questão de conversar com todos os funcionários e seguiu às estantes para procurar o próximo volume de sua lista. O encontrou em um canto escuro e abafado. Bateu o pó, folheou algumas páginas com muito cuidado, pensou bem e tirou o livro de sua solidão. Os primeiros capítulos foram lidos em uma mesa bamba rodeadas de cadeiras barulhentas.

Quando levantou a cabeça e olhou para o velho relógio no alto da sala percebeu que era tarde e devia estar atrapalhando. Foi à recepção, garantiu a posse do exemplar por uma semana (era muito mais que o tempo necessário) e guardou-o em sua bagagem.

Ao chegar em casa jogou a mochila de qualquer jeito sobre a mesa da sala. Uma péssima escolha. O utensílio rasgou suas costuras e espalhou o que havia dentro dela. O livro recém alugado foi parar sob um armário. Bufou de raiva, buscou uma vassoura e resgatou o bem público, guardando-o na estante próxima à TV.

Descalçou o tênis, tomou uma ducha demorada, preparou um chocolate quente e zapeou por muitos canais sem encontrar nada de interessante. Era incrível como a programação de 300 emissoras poderia ser maçante. Desligou o aparelho, foi até o quarto, ligou o computador, visitou alguns sites, leus as notícias e atualizou-se nas redes sociais.

No final da tarde lá estava ele. Olhando para um documento em branco enquanto o cursor piscava lentamente.