O santo sumiu

Mamãe costumava ir se consultar com muitos médicos. Ela tinha umas enxaquecas terríveis. Aí a empregada dela disse que tinha um homem lá no Parque Dez que curava tudo quanto é doença. Mamãe resolveu ir lá. Tentar não custa nada.

A empregada nos levou até lá. A maioria das ruas do Parque Dez ainda eram de barro. Ainda estavam construindo o Conjunto Shangri-lá. Descemos uma rua comprida e lá no finalzinho, viramos a direita e entramos numa ruela cercada de mato. Tinha umas poucas casas. A úlltima casa, depois de atravessar um igarapé, era a casa do homem.

Me lembro de mamãe se equilibrando nas tábuas para conseguir atravessar. Ela morria de medo de cobra e em todo lugar que olhava pensava que sairia uma cobra.

Entramos na casa do homem. Lá dentro era tudo muito pobre. O que me chamou a atenção foi uma cabeça de boi que ele guardava em cima da porta da entrada. E o fato de ter um monte de garrafas com temperos, ervas e outras coisas penduradas no teto. A casa era toda de madeira, como as antigas palafitas, e toda ela rangia.

Tinha uma mulher muito velha sentada num canto, olhando para todo mundo. Ela não dizia nada. A outra, veio da cozinha e foi logo se apresentando como irmã do homem.

A propósito, o nome dele era Arly. Segundo a empregada, ele conseguiu fama de milagreiro depois de voltar do interior. Seu pai antes de morrer lhe passou todas as receitas que tinha de remédio. Voltou e começou a curar o pessoal na região.

A irmã dele foi chamar o homem. Deu uns minutinhos, ele finalmente apareceu. Eu pensei que seria um homem alto ou um velhinho com uma barba longa e uma voz melodiosa como um profeta. Era na verdade um sujeito meio barrigudo e careca com um bigode igual ao do Sinhozinho Malta.

Ele era muito calado. Deve ter falado só umas duas ou três frases em todas as duas horas que ficamos lá. Minha mãe estava morrendo de medo. Ela apertava tão forte a minha mão que ela estava quase ficando roxa.

Ela falou de seu problema e ele ouviu tudo com um sorriso no rosto. Depois ele falou: "devemos usar o medo e não deixar ele nos usar"! Ou algo do tipo. Deu um copo com um líquido para ela. Pediu para sentar que ele iria tirar a enxaqueca. Começou a massagear as têmporas de minha mãe enquanto murmurava uma ladainha. Ela começou a tossir. A última tosse, a mais forte, terminou com ela cuspindo uma bolinha vermelha.

Todo mundo ficou assustado. Ele pegou a bolinha vermelha, limpou com água e nos mostrou: ela parecia uma pedra de rio, um seixo. "Essa é a sua enxaqueca, ele disse, foi seu medo que fez ela nascer e crescer". Ele disse que tirou ela, mas não tirou o medo, isso seria com minha mãe. Se ela não superasse o medo, a enxqueca voltaria.

Minha mãe ficou atônita por uns minutos. Ela parecia nem estar ouvindo ele. Ficava apenas olhando a pedrinha. Antes de sair, ela perguntou á ele o que tinha naquele copo. Ele riu e disse que era só água. Nos despedimos e voltamos pelo tortuoso caminho.

Mamãe passou uns três dias meio estranha; Olhando todas as coisas como se tivesse algo escondido nelas. E depois de uma semana ela começou a rir, ela não sorria tanto antes. E o mais estranho: a dar fortes gargalhadas! Ela ria de coisas bobas, de histórias que contávamos ou algo que via na tv, ás vezes nem precisava ser engraçado.

Ela nos fez parar de jogar videogames. Nos deixava jogar só uma hora antes do jantar. Ela dizia que queria que a gente não ficasse parado. "O tempo passa rápido, ela dizia, depois vocês vão querer ter aproveitado mais". Uma vez danamos a brincar de guerrinha de barro com os amigos da rua. Ela saiu de casa bem na hora que tinha levado um tiro. Ela me viu todo sujo e eu pensei que ia me dar uma bronca como antes. Que nada! Ela adorou e soltou uma daquelas gargalhadas.

Eu não entendia. Para mim, o Arly tinha feito algo com minha mãe. Ela estava muito diferente. Meu pai tinha percebido a mudança, mas tinha gostado. Antes os dois brigavam muito. Depois daquilo só se ouviam berros e gritos no corredor de vez em quando.

Ela voltou no Arly uma vez, eu não estava com ela, me lembro que estava jogando no ginásio do colégio o Interestadual de futebol. Ela disse que foi lá agradecer Arly por ter curado ela.

Eu nunca entendi direito o que tinha acontecido naquele dia em que ela cuspiu aquela pedrinha. Só fui ter uma idéia do que aconteceu há um tempo atrás quando tinha concluído o Ensino Médio. Eu ainda não tinha decidido o que faria, não sabia qual curso escolher. Eu dizia a todos que queria fazer Engenharia, mas na realidade queria mesmo era fazer Audiovisual. Mas achava que não conseguiria me sustentar assim. "Depois de fazer a faculdade de Engenharia eu faço Audiovisual", eu pensava.

Minha mãe percebeu isso, do jeito paranormal que só as mães sabem, e foi falar comigo um dia. Ela perguntou se era isso que eu queria. Depois de insistir muito eu finalmente respondi a verdade á ela. Audiovisual. "Você sabe que vai ser difícil depois"? Sei. "Mas é o que você gosta"? Sim. "Então faça!!"

Eu me surpreendi, estava preparado para um sermão. "Meu filho, ela disse, a pior coisa que existe é deixar de fazer algo por medo, o medo mata a gente aos poucos. Faça o que quer fazer, mas com cuidado. Não tenha medo da vida". Ela disse isso, me beijou e saiu do quarto. Eu fiquei pensando naquilo. A fala dela me lembrou muito as breves frases de Arly naquele dia. Hoje estou no último ano do curso, com mil projetos á vista e mil problemas também de viabilização, mas feliz. É duro, mas é divertido. No final, tudo compensa.

Outro dia pensei em buscar alguma notícia sobre o santo milagreiro do Parque Dez. Minha mãe perdeu contato com ele, desde que nos mudamos de casa há uns 12 anos atrás. Eu procurei nossa antiga empregada. Ela me disse que Arly tinha sumido á cinco anos. A irmã acha que ele voltou para o interior, mas já procuraram lá e não acharam nada. O pessoal da redondeza até hoje espera que ele volte. Tem um pequeno altar com seu retrato em frente á sua casa, que hoje fica numa rua apinhada de casas e asfaltada.

Eu fui lá. Encontrei a irmã dele. Não parece ter mudado nada. Ela disse que um dia antes dele sumir pegou o irmão cantarolando na varanda da casa. Ele interrompeu o canto para falar, como quem falasse para a natureza, que no dia seguinte ele veria seu pai de novo. Ela acha hoje que ele pegou a canoa e foi se encontrar com o pai lá pro interior, num lugar do mato onde o mundo vira o além.

Eu até imagino o Arly navegando na sua canoa pelo rio. Entrando na névoa e saindo em outro lugar. Num lugar encantado onde estaria o seu pai esperando por ele em um barranco. Ou quem sabe um disco voador surgiria e o puxaria com canoa e tudo para seu interior, levando-o "de volta para casa".

Seja como for, um dos meus projetos é justamente falar de Arly em um documentário. O nome será "O Santo Sumiu" e acho que as duas hipóteses acima serão bem exploradas no filme. Pretendo iniciar dando meu depoimento, esse depoimento, sobre a influência que esse sujeito teve na minha vida e de minha família.

Se não fosse ele ter feito minha mãe superar seus medos eu não teria superado meus medos também. Por isso esse filme, apesar das brincadeiras, é uma espécie de homenagem á essa figura quase anônima. Arly surgiu do nada e sumiu do nada. É como se fosse uma lenda e o legal das lendas é que por mais absurda que sejam elas cotinuam por aí. Portanto, pode ser que eu esbarre em Arly um dia.