O inferno nosso de cada dia

Toda de branco na esquina da rua - se fosse de noite algum desavisado confundiria com uma assombração. Mas não estava de noite e não era assombração nenhuma. Era Cleyciane esperando passar a rota.

A cara de cansaço e mal começou o dia. É cansaço de tudo: do trabalho, da faculdade e do namorado.

A rota chegou. Lá vai o comboio de gente para o distrito. Alguns babacas começam a brincar sobre Edson que, segundo eles, entupiu a privada do banheiro. Cleyciane nem mais se importa com isso. Esse pessoal no caminho pra fábrica ou pra casa fala cada merda.

O ônibus apertadinho vai rodando a cidade, mais gente vai subindo. Finalmente parte para o distrito. Alguns estão animados, não se sabe porque.

Cleyciane já perdeu o ânimo há muito tempo. Quase três anos nessa merda. Trabalhando, trabalhando. Tendo que aguentar esses nojentos e o chefe. Isso sem falar dos japoneses que de vez em quando aparecem só para fiscalizar e encher o saco de todos.

Quando se formar em Pedagogia vai fazer todos os concursos. Ela tem de sair daqui de qualquer maneira! Só não saiu ainda pelo dinheiro e pelo plano de saúde.

Ser professora não vai dar muito dinheiro, mas planeja construir um negóciozinho com a mãe para garantir. Pode ser um bazar ou um restaurante. Já está pesquisando os fornecedores.

Todos saltam do ônibus. Cleyciane anda como se estivesse marchando para a guilhotina. Vai para o almoxarifado. O velho almoxarifado. Sempre com aquele cheiro de naftalina. O pior é que depois de uns anos trabalhando nele você acaba pegando o cheiro. Não adianta tomar mil banhos. O futum agarra até na alma da pessoa!

Vamos ás contas. Vamos ver se todos os produtos vieram. Se todos pegaram suas máscaras, seus uniformes, luvas, etc. O rapazinho que carrega as caixas ainda não chegou, o jeito é carregar aquele pacotão para o depósito sozinha. Ela já fez isso antes. Afinal, ela começou como carregadora. Uma perna que manca levemente é a lembrança desse tempo.

O celular toca. É o namorado. "E aí? Como cê tá?" Bem. "Acabou de chegar?" Sim, to carregando umas coisas. "Tá, depois a gente se fala, vou ter que ver uma coisa aqui. Beijos" Beijos.

O namorado. O namorado é outra história. Outra frustração. Há anos querendo casar, já noivaram, mas nada. Já pegou ele em flagrante, duas vezes, mas depois de um tempo, não conseguiu, voltou para ele.

Fazer o quê? Afinal, ela ama ele. O jeito que trata ela, sem nenhuma truculência, isso cativou a mulher. De alguma forma ele é especial.

Alguém está na bancada. Só viu a sombra. Talvez seja um dos japoneses. Não, é um dos trabalhadores. Um sujeito chato que perdeu a sua máscara e que está há uns dois dias querendo uma nova. "O carregamento ainda não chegou", diz ela repetindo o que já falou nas duas outras vezes. "Mas eu preciso!" Todo homem que mexe com tinta ganha duas máscaras, uma delas é de reserva. "Perdi a minha reserva antes." As novas máscaras tinham acabado de chegar há uma semana e ele já tinha perdido as duas. Cleyciane não tem mais saco, joga na cara o fato. O homem insiste. "Tá bom, tá bom! Vou ver se tem alguma sobrando no estoque, o senhor passa aqui depois do almoço que te dou". O homem aceita e vai. Assim que fecha a porta, ela desabafa: "Seu merda!..."

Finalmente o rapaz do carregamento chega. É um sujeito magricelo, mas com uma força danada. Ele é educado com Cleyciane. No começo ele olhava-a com aqueles olhos de desejo. Mas depois que o namorado dela, um sujeito alto, meio fortão, começou a aparecer por lá nas horas vagas, ele passou a esconder seu olhar. Agora limita-se a cumprimentá-la e olhá-la no rosto. Até hoje o namorado dela desconfia desse sujeito.

As primeiras experiências no distrito foram duras. Cleyciane começou trabalhando numa fábrica de eletrodomésticos. E ela é uma mulher bonita. De rosto lembra a Camila Pitanga. Mas o que deixa os homens loucos é sua cintura fina. Os primeiros tempos de trabalho foram os piores. Os olhares dos homens, os cochichos, as indiretas. Uns já chegaram a beliscá-la. Pediu a conta e decidiu nunca mais trabalhar no distrito. Mas emprego hoje, você sabe, é um calvário. A mãe estava para se aposentar, alguém tinha que sustentar a família. Não tem como não escapar do distrito. Voltou ao trabalho, agora em outra empresa. Passou por duas fábricas, antes de chegar nessa. Em todas havia aquela tensão. Mesmo na segunda existindo mais mulheres que homens, ainda havia aquele sentimento, vindo, inclusive dos chefes.

Na atual fábrica isso não acontece, graças ao seu namorado que além de ser grandão tem fama de esquentado. Uma vez um sujeito da linha de montagem foi se engraçar com ela enquanto estavam na rota. No outro dia quando ele subiu no ônibus, estava com um belo olho roxo e ficou calado por toda viagem.

Quem chega de manhã conta os minutos para o almoço. O almoço de 20 minutos. Não dá nem pra digerir a marmita! Depois do almoço é hora de esperar ansiosamente pela hora da saída. Da fábrica, contudo, Cleyciane irá em casa, tomará um banho, fará um lanche, para aguentar a faculdade, que vai até ás 22h. Resumindo, em casa, ela só dorme.

Os sábados, quando o trabalho termina mais cedo, são o dia em que mais dorme. Não adianta nem sair, curtir o sabadão. Cansada do jeito que está, ela não se aguenta em pé. Curtir o final de semana só no domingo. Passeando com o namorado ou almoçando com a família. É o jeito.

A qualquer hora do dia, Cleyciane estará com uma feição de cansaço. Tanto que já virou sua marca registrada. Aquele andar sem pressa e aqueles olhos fundos.

Sua irmã é o contrário: sempre elétrica. Pulando, correndo de um lado para o outro. Falando mil coisas ao mesmo tempo.

"Por quê você é tão baixo astral, Ci?", pergunta ela. "Deixa você trabalhar no distrito que vai saber porque!"

Sua irmã está fazendo faculdade também. Enfermagem. Entrou junto com a irmã. Em breve estará formada. Se vai conseguir emprego é outra história. É o que fica pensando Cleyciane.

O distrito é uma coisa estranha. Ela suga toda a energia da pessoa. É o que acha Cleyciane. Para ela, o distrito é o seu inferno diário. O que se salva são as viagens que costuma fazer de vez em quando com os amigos e amigas. Tem uma amiga que tem uma pousada em Rio Preto da Eva e uma vez por ano o passeio pra cidade é garantido. É o paraíso! Tomar banho no rio, dormir na rede. Esse ano ainda não fizeram. A amiga já disse que será em breve, daqui um mês. É o que tem garantido o bom humor de Cleyciane nessas últimas semanas.

Chegou o almoço. É peixe com baião de dois. Aquele baião de dois meio rançoso, que parece que já tem um dia, que não foi requentado direito. Vai comer na mesinha do namorado no refeitório. Os dois se cumprimentam com um beijo. Entre uma garfada e outra, se olham, sorriem. Perguntam alguma coisa banal, sobre o tempo por exemplo.

Se der ainda um tempinho eles vão para o corredor, trocar umas carícias. Hoje não deu. Lá vai ela para o almoxarifado de novo.

O passo lento, de quem faz de tudo para adiar o momento derradeiro.

Na porta do almoxarifado estava o fiscal japonês. Fumando como sempre. Ela odeia esse homem. Além de falar rápido, toda hora vem implicar com alguma coisa. Dessa vez veio conferir o estoque de novo. Seu medo é de que o pessoal do almoxarifado roube alguma coisa. Medo explícito.

"Vim conferir estoque." Tá certo, Seu Nakaghishi.

Pega a lista e vai para o depósito. Ela tem que ir junto. Olho na lista. "Onde está o carregamento de botas?" Tá ali, Seu Nakaghishi. E leva ele até onde a caixa está empilhada. "Hmm... E as máscaras?" As máscaras já foram distribuídas, Seu Nakaghishi. "Mas aqui tem carregamento reserva. Onde está?" Deve estar aqui perto das botas.

De repente, lembrou do sujeito que perdeu a máscara.

Seu Nakaghishi, tem um homem que perdeu a máscara e queria saber se pode pegar uma máscara das de reserva. "Pegar? E a reserva dele? Perdeu as duas? Mentira!Ele tá querendo mais máscara! Tá nos enganando! Onde está as latas de tinta?"

Depois de uma hora e meia, finalmente, o japonês vai embora.

Cleyciane volta ao seu balcão e lá está o homem atrás da máscara prometida.

Olha, eu tinha separado a máscara e ia te dar, mas o Seu Nakaghisi não deixou. "Japonês filho da... E tu? Tu não pode me dar mesmo assim? Sem ele saber?" É ruim é! O homem confere tudo, vai descobrir. "É só fechar de novo e ele nem vai perceber!" Como que eu vou fechar a caixa já aberta? Se eu conseguir ele vai dar pra ver que eu fechei. Não dá! "Você que tá de corpo mole! Duvido que se fosse pro seu namorado não conseguiria na hora!" Se fosse pro meu namorado eu faria a mesma coisa, porque não é no salário dele que vão descontar a falta da máscara! "Sei, sei... Se eu ficar doente, a culpa vai ser sua!" A culpa, meu senhor, é sua de ter perdido as duas máscaras não faz nem uma semana, agora licença que eu tenho que trabalhar!

O homem encarou ela por um tempo e saiu resmungando.

Ela já se acostumou com isso. O tanto de gente que aparece aqui pedindo alguma coisa. A maioria nem chegou a perder nada, pede só pra vender por fora. Tem que ser assim. Da última vez que ela deu uma bota para um funcionário, o japonês descobriu e descontou do salário dela. Desde então vem três vezes na semana no almoxarifado conferir o estoque.

A raiva é tanta que ela não conseguiu fazer os cálculos dos carregamentos. Ao invés disso começou a fazer rabiscos no verso de um requerimento. Depois de um tempo, aí sim, ela está pronta. Olha as listas, alguns requerimentos. Não tira os olhos do relógio preso na parede. A hora está chegando. Mas aqui no almoxarifado o tempo parece ser mais lento. O rapaz do carregamento já colocou tudo no depósito. Cleyciane já checou tudo. Faltam uns 30 minutos.

Deixa os papéis na mesa. O rapaz já foi saindo. Ela tem que fechar o almoxarifado. O ônibus da rota está chegando. Ela sobe.

Liga para o namorado e pergunta se ele pode buscar ela na faculdade hoje. Ela não gosta de depende dele, principalmente como carona. Mas hoje a cidade está muito agitada, amanhã vai ter um show no centro, então é melhor não arriscar.

Desce na esquina de casa. Os bares já estão abrindo, as crianças estão soltas na rua. A mesma coisa de sempre. Chega em casa. Tira o uniforme branco e vai para o banheiro tomar um banho antes de ir para a faculdade.

Ao se olhar no espelho, cansada, acabada, conclui melancolicamente com a frase com que sempre fecha o dia: "Isso não é vida..."