infância singular

infância singular

Era o ano de 1960, em nossa humilde casa, lamparinas acesas, minhas irmãs e eu deitadas no chão da sala, minha mãe sentada no meio de nós, fazendo crochê...A única fonte de renda que ela tinha para nos sustentar.Eu com apenas três aninhos, passava pela angústia de ser desmamada, pois mamãe não tinha mais leite. Então meu avô(0 pai Chiquinho)comprou uma cabra para tirar leite pra me alimentar; isto tudo, acho que só lembro por serem passagens marcantes na minha mente, e por ouvir minhas irmãs e minha mãe repetirem.

Minha mãe me contara , que morando de aluguel numa casa que era de sua tia ,um dia atrasou o pagamento do aluguel e ela pediu que desocupasse a mesma, por conta disso foi minha mãe com os filhos para debaixo de uma árvore chamada oiticica, muito frondosa, onde residiu por três longos dias, até que pai Chiquinho veio lá do Recanto, onde morava,( era um lugarejo vizinho de nossa cidade Novas Russas, no Ceará), para nos ajudar.

Dona de Lourdes, minha querida mãe, como a maioria das mulheres nordestinas sofredoras, ficou sozinha com os filhos quando meu pai resolveu ir tentar a sorte no rio de Janeiro;Sorte dele, pois foi e não voltou; ou só voltou para passear, seis anos depois de deixar minha mãe com cinco filhos, quatro meninas e um menino, sendo uma, apenas bebê. Neste passeio de um mês, deixou ela grávida de mim.Portanto eu com quatro anos, não conhecia ainda meu pai.lá em casa tinha uma foto dele, num quadro pendurado na parede, adornando o ambiente tão humilde, juntamente com os santos. Na foto papai tinha um lindo bigode e cabelos muito pretos, era magro, vestia um terno de linho branco e fazia pose de um homem muito elegante. Aquele quadro era meu orgulho, tinha verdadeira adoração à ele, ficando horas à amá-lo e a Admirá-lo.

Seu Antônio meu pai, já estava há um longo ano sem dar notícias.Lembro de minha mãe contar que ele mandou para casa de minha avó paterna uma mala cheia de tecidos, e que ela os levou pra mamãe.Era como se fosse prêmio de consolação ,só tinha chita dentro da mala.

Um dia, chegou uma prima dele, lá do rio,a Socorro, dizendo que ele estava muito bem, e que sabia do seu endereço; assim, incentivou minha mãe a ir em busca dele.

Batista, o único menino, que tinha apenas oito anos quando o pai foi embora, era muito inteligente, gostava de ler tudo que via. Um dia conseguiu um gibi de um super-herói e fazia deste uma moeda, usando para trocar com alguém que nunca o tinha lido, por outro que ele queria ler. com apenas quatorze anos, quis ir embora para Brasília, menor de idade não podia viajar sozinho num pau-de-arara.(caminhão coberto com lona com bancos de madeiras) único meio de transporte do Ceará para Brasília. Foi então que nossa mãe usando um artifício que era muito usado naquele tempo aumentou a idade dele registrando-o de novo, como se tivesse dezoito anos.

Meu irmão foi pra Brasília em 1960 e em 1962, Dona de Lourdes, cansada de sofrer, criando os filhos sozinha no ceará, resolveu ir atrás do Seu Antonio.

Não podia levar todas as filhas mesmo com a ajuda dos parentes; o dinheiro não dava para comprar as passagens e para os gastos da viagem.Amélia que era a mais velha de nós era um tanto doente e ela não podia deixá-la, mesmo porque queria, ao chegar lá, fazer um tratamento de saúde nela.A Isete e eu, éramos as mais novas,e restaram as meninas do meio que eram a Irinete e a medalha, que ficaram na casa de uma tia.

Chegando ao Rio de janeiro, Seu Antônio estava à nossa espera na rodoviária, era um homem baixo e gordo mal arrumado, de bigode e cabelos já um pouco grisalhos, e não tinha nem de longe a elegância e o porte que o meu pai do quadro tinha.não! Aquele não era meu pai .O homem me chamava, queria me abraçar e eu corria pra detrás de minha mãe, agarrando-me nela, e me escondendo nas suas saias, como quem pedia socorro. Ele tinha os olhos vermelhos e um cheiro que eu, na minha inexperiência , não conseguia identificar;cheiro esse que depois se tornou peculiarmente insuportável e conhecido, era cachaça misturada com cebola. Eu não quis nem saber dele.

Fomos para casa, papai chamou um táxi pra nos levar.Encantei-me com a paisagem a caminho.Mar pra todo lado.logo avistamos a praia do Flamengo, Botafogo,passamos por um túnel e chegamos à Copacabana, Ipanema, Leblon, subimos o morro do Vidigal, logo avistamos a praia de São Conrado e finalmente chegamos ao nosso destino: A favela da Rocinha, a maior favela do mundo! Lá no largo do boiadeiro, meu pai tinha uma birosca(nome que se dá,no Rio de Janeiro,a um armazém) muito grande e sortida, vendia de tudo, da cachaça à carne de jabá.Nos fundos as nossas acomodações tinha até geladeira e rádio “voz de ouro”.Muita bagunça e sujeira,meu pai vendia até carvão,então tinha um pó preto que cobria tudo, mas com uma boa faxina, logo ficou com cara de lar, "o lar da Dona de Lourdes".

Vivíamos aos trancos e barrancos, com as dificuldades da adaptação familiar, por tanto tempo separados; e minha mãe teve de suportar os desmandos do meu “novo pai”, que bebia bastante, e às vezes nos ameaçava de forma até violenta, tudo fruto da embriaguês, é claro.Meu pai, além de tudo que fez minha mãe e nós passar, era um homem bom, tinha suas qualidades, era generoso, não deixava-nos faltar nada. Em nossa nova casa tínhamos muita fartura.

O tio Zé, irmão de minha mãe, já vivia no Rio havia muitos anos, era gerente de um hotel no bairro do leme em Copacabana. O ‘praia leme” como se chamava o hotel era de uma americana, de alma nobre e um enorme coração, Dona Lot.Mesmo sendo rica, se incomodava com o sofrimento dos humildes que lhe rodeavam.ao saber da história de minha mãe, se ofereceu para trazer as duas meninas que haviam ficado no Ceará.Comprou até passagens de avião e as duas meninas puderam enfim,depois de ir de Nova Russas para Fortaleza, vir pra junto de nós, depois de nove meses que estávamos no Rio de janeiro.

Em uma das peripécias do meu pai, sob o efeito maldito da pinga, ocasiões em que maltratava a minha inocente mãe uma dessas noites eternas, em que ninguém tinha sossego, e nem conseguia dormir, o Seu Antônio foi longe demais, nos ameaçou de morte, dizia que ao dormirmos ele levaria a termo seu projeto, e para isso começou a afiar a faca na nossa frente e voltar para frente da birosca, onde bebia sem parar.Nós apavoradas chorávamos sem ter onde buscar ajuda,nem uma solução...De repente, uma de nós teve uma idéia:fugirmos pelos fundos dos barracos caminhando de lado em cima de umas tábuas que vinham das sobras dos assoalhos que eram de madeira barata.Os barracos eram suspensos do chão, pois passava uma vala embaixo de todos eles, era o esgoto da favela que passava por ali como um rio a céu -aberto.Pra subir ou entrar em casa, se usava fazer escadas de tijolos.Com muito sofrimento chegamos de madrugada à Copacabana, onde meu tio morava no andar térreo do hotel Praia leme, nessa época já a bondosa D.Lot, havia ido embora para os EUA e deixou meu tio tomando conta do hotel. Lá ficamos por dois deliciosos meses,as melhores lembranças de minha humilde infância,quando tive tudo que uma criança gosta de ter ,praia , carnaval,banheira,bonecas(claro que eram de minha priminha inesquecível,Ana Cristina)...luxo que eu depois senti muita falta.O tio Zé não queria que voltássemos pra Rocinha.Minha mãe cedeu à insistência de Seu Antônio, e voltamos à rotina; pois apesar das promessas ,seu Antônio não mudou, continuou bebendo, jogando e aprontando das suas.Certa vez em uma das brigas que minha mãe era personagem passiva; ouvi-o falar: “vieste atrás de homem no rio de Janeiro”!minha Mãe respondeu: “vim atrás do meu marido, e pai dos meus filhos”, dizia isso com muita força e integridade batendo no peito, um costume que ela tinha para reforçar uma atitude de coragem. Também lembrava pra ele o motivo de sua zanga infinita, que era o fato dela ter vindo acabar com a vida mansa que ele levava, usufruindo liberdade de solteiro, enquanto sua família passava necessidade , no Ceará.

Lembro também, que quando tinha uns sete anos, fugi de casa, ou melhor, saí escondida, num dia de Cosme e Damião. Lá na favela quase todos davam doce, promessas de umbanda e coisas assim, e eu, só por farra, fui entrando em todos as filas, recebendo os saquinhos, e nem comia, colocava tudo dentro de outro saco grande, já tinha ido em mais de dez residências receber doces, e só voltei pra casa,chorando, quando passou um moleque e me tomou tudo,e saiu correndo...Ah! aquele dia frustrante não saiu nunca mais da minha cabeça. Acho que é por isso que hoje quando vejo, doces, chocolates, ou qualquer outra guloseima, quero comer logo tudo de uma vez, com medo de perder de novo…

Havia umas mulheres lá pra cima do morro, que segundo rumores, tinham liberdades com nosso pai antes de chegarmos, tinham inveja e raiva de nós. A Irinete, minha irmã, era uma moça muito bonita, quase índia, de dar inveja, nessa época, ela já trabalhava, na extinta “Casas pernambucanas”, por isso, andava muito bem arrumada; Um dia ela e eu íamos passando, quando uma dessas mulheres, que morava em um barraco de andar, tipo sobrado, lá de cima, despejou um pinico de “xixi” em cima dela, lembro-me do constrangimento e enorme vergonha que ela ficou, chegou em casa chorando…E quem pagou o pato foi o seu Antônio, com o falatório de Dona de Lourdes,e lhe apontando como culpado.

A ,Medalha, que com a Irinete veio do Ceará depois, de avião,era a que gostava de lavar a roupa lá de casa. Na Rocinha tinha uns tanques comunitários no Largo do Boiadeiro, onde podia-se lavar e estender as roupas. Então a Medalha sempre que tinha roupa suja, com aquele jeitão simples que sempre teve, colocava a bacia na cintura segurando com uma das mãos, e lá ia para os tanques lavar roupa.Numa destas vezes, começou a escutar uma voz atrevida que dizia, “Oh! Garota linda! Leva meu lenço pra lavar...” E isto se tornou uma constante. Ela chegava em casa aborrecida dizendo que não ia mais, porque um paraibano metido á besta não largava de atormentá-la, minha mãe dizia “porque tu não pega o lenço dele pra lavar mulher, deixa de ser besta!” e ria. João era o nome deste paraibano, dono de um caminhão e de uma casa muito bonita,(coisa rara no meio de tanto barraco), subindo na nossa rua mais em cima um pouco. O João tinha vinte e oito anos e a Medalha apenas dezessete, mas enfim, deu em casamento, e foram muito felizes.

A Amélia, minha irmã mais velha, tinha quinze anos quando viemos para o Rio, no mesmo ônibus que viajamos, veio também o seu namorado Tété, que era parente de meu pai, depois de um tempo ficaram noivos. Meu pai um dia, não sei porquê, determinou que a Amélia não ia mais namorar o Tété. Ela revoltada respondeu umas mal-criações a ele, que quis bater nela com uns fios de luz dobrados, minha mãe que imaginou que ela não agüentaria apanhar com aquilo, tomou a sua frente, e as suas pancadas também. Amélia dessa vez foi morar com o tio Zé e a tia Antônia, lá no Leme,que fizeram o seu casamento com o Tété, lá mesmo em Copacabana, por sinal, o casamento mais bonito que eu já vi. Minha prima Ana Cristina,filha do tio Zé, e eu, fomos as damas de honra da cerimônia.

Lá na Rocinha,cedo da noite, costumávamos nos sentar numas pilastras de cimento que tinha na escada na frente da birosca,para ficarmos vendo o movimento da rua, numa noite destas passou um marginal da favela chamado Tenório, parou na nossa frente, abriu a braguilha e começou a fazer “xixi” na nossa frente; corremos para dentro contando o que aconteceu.No dia seguinte o papai contou o ocorrido ao chefe do tráfico de drogas, o “anjo” protetor da favela, o “Pernambuquinho”, que se encarregou de punir o dito cujo.Não sabemos qual foi a repreensão, só sabemos que o Tenório quando passava na frente da birosca, parecia santo.

Uma noite, já depois da birosca fechada, começou um tiroteio em frente à nossa casa, e `a do seu Mateus que ficava do outro lado da rua.Depois que o tiroteio cessou, reinou um silêncio de dar medo! Mais tarde fomos olhar nos buracos da madeira, e tive o meu primeiro contato com a morte, que eu, então com seis anos nem sabia que existia.lá fora, jazia um corpo.Logo vimos um homem que se aproximava, daquele no chão.O homem todo vestido de branco (que meu pai logo identificou aos cochichos que era o" Pernambuquinho"Chefe do tráfico da Rocinha) até o sapato era branco, notório pois ele com o pé virou o corpo para constatar se estava mesmo morto.A disputa era pelo poder do tráfico de drogas na favela. Aquele morto não era morador da Rocinha, e sim de outro morro.Dias depois,armaram uma tocaia pra ele, uma foto no jornal e uma nota dizia: “morto na favela do Canta Galo o chefe do tráfico de drogas da Rocinha”,e isso dava fim ao episódio.

Não muito depois ouvi minha mãe dizer ,com uma cara de desdém, que a viúva do Pernambuquinho (que só andava de linho branco e engomado) já estava engomando as roupas dele, para aquele que agora cantava de galo em seu galinheiro.Eu na época não entendi nada, anos depois que perdi a inocência é que fui compreender o que minha mãe dizia.

Seu Mateus, o da birosca em frente a nossa, era um homem estranho, calado,mas educado,tinha mulher e três filhas, de quem tinha muito ciúmes. A Leninha era a mais velha, com dezessete anos, a Lenira com mais ou menos quatorze, e Maria com dez anos, foi a minha primeira amiga, eu ia para casa dela brincar, e ajudar sua mãe,dona Amália a bater os bolos, existia um interesse de minha, parte ,pois sempre depois, ela nos dava a bacia para lambermos.

Um dia a isete entrou em casa chorando, o motivo fora a notícia imprevista, de que a Leninha havia falecido; pois segundo seus pais passara mal á noite, e levada ao hospital já chegara morta. Fato estranho pois era uma moça saudável e muito jovem.Mais estranho ainda, fora a reação da família; resignada, ao ponto de nem mesmo sua mãe derramar um única lágrima. E o enterro?Não houve! Pelo menos ninguém fora convidado para chorar a defunta.Disse a família que, o corpo fora levado direto do hospital ao cemitério e que não dera tempo para avisar a ninguém.Passado alguns dias, correu na vizinhança um boato que a morte da donzela, quem causara fora o seu namoro com um marginal chamado Tenório, aquele lembra?O do xixi!E o cemitério, era um convento lá pelos lados de Niterói.

Até o Tenório havia se convencido da morte da coitadinha.Os boatos da vizinhança desocupada chegaram aos seus ouvidos; ele, muito apaixonado, não mediu esforços e se esmerou em descobrir se era de fato veraz tal informação.Foi em busca do tal convento e não demorou muito para encontrá-lo, e a ela também, começou então ,os encontros noturnos com a moça que estava muito bem viva; e para se vingar do seu Mateus, que arquitetara tal ardil, contava para Deus e o mundo sobre seu romance.

Não demorou muito para que as freiras descobrissem as fugas noturnas. Tarde demais, pois a moça já estava grávida.Tiveram que fazer o casamento lá mesmo no convento.Seu Mateus morreu de vergonha e desgosto, o Tenório largou a vida errante, e se mudou para Niterói para consumar sua linda história de amor, e até onde sei fez a Leninha muito feliz..

Lá em casa as coisas continuaram na mesma.Chegando no ano de 1964, começou a si ouvir rumores de uma revolução em Brasília,onde vivia meu irmão, que nesta época era engajado ao exército.No rádio “voz de ouro”, de hora em hora tocava uma música que anunciava o REPORTER- ESSO e eu me apavorava, chorava, e gritava dizendo:"desliga, desliga"!Meu irmão Batista, era funcionário da NOVACAP, mas no ínterim engajadono exército, por isso o meu pavor.

O Batista escreveu pra mamãe dizendo! “se me mandarem para batalha, eu “mato ou morro”!Eu chorava e minha mãe dizia,”deixa de ser besta menina, teu irmão está brincando”...Batista disse que comprara um lote com uma barraco numa cidade chamada Gama, e que a mamãe parasse de sofrer e que viesse para Brasília, pois ganhava razoavelmente bem, e que podia nos sustentar.Ele gostaria que estudássemos, pois na Rocinha não estudávamos, lá as escolas eram como faculdades de malandragem.Minha mãe então com 45 anos, estava grávida já de sete meses, mesmo assim resolveu ir embora para Brasília atendendo ao pedido do meu irmão, que era para ela o esteio da família.A Amélia e a Medalha já casadas, não vieram de imediato conosco para Brasília.Viemos, minha mãe, a Irinete, a Isete e eu, agora já com oito anos.

O seu Antônio disse: “Eu não vou, pois não sou homem inútil para ser sustentado por filho.” logo que partimos, ele se envolveu em um jogo com marginais e chamou um de ladrão, foi jurado de morte e teve que dá fim em tudo que tinha, do dia para noite e fugir...Pra onde...?

Depois de uns meses em Brasília, bem instalados, reinava a paz em nossa casa.Minha mãe deu à luz no Hospital distrital de Brasília, hoje Hospital de base ,a um lindo menino e deu-lhe o nome de Francisco Antônio para homenagear os avós, paterno e materno.A Isete e eu estávamos estudando em uma escola pertinho de casa e éramos muito felizes!

Era o ano de 1965, e quem chega...?O seu Antônio de mala e cuia.Continua nossa vida em Brasília...

Mas essa é uma outra historia... !!!

Iranete do carmo
Enviado por Iranete do carmo em 13/12/2006
Reeditado em 31/03/2009
Código do texto: T317062