Sobre Homens e Abismos

I – Sobre O Homem Diante do Abismo

Um homem diante do abismo tentava o suicídio. E enquanto a única árvore que havia em volta balançava, porque o vento soprava gritando e desejando a morte num uivo quase que uníssono, apareceu um outro homem que vendo aquele tão próximo do abismo implorou:

- Você: Retire-se já diante deste abismo, porque o vento é forte e pode soprá-lo para dentro dele sem ter dó de ti e nem piedade em seu ofício.

Então o homem que estava diante do abismo retrucou ao outro homem. E ainda olhando para o abismo da mesma forma lhe disse:

- Pois que me sopre o vento de forma revoltosa para dentro deste abismo. Estando uma vez dentro dele não ousarei regredir de nenhuma forma, porque é isto o que eu mereço e preciso. Abrirei meus braços para que possa me servir desta queda por inteiro e cerrarei meus olhos para não ver a chegada do fim que não está de mim tão longe.

O outro homem que o via de costas respondendo de forma fria à sua proposta, sem nem ao menos olhar nos olhos daquele que lhe pediu para que voltasse à vida, aproximou-se um pouco mais a curtos passos. E diante do vento forte estendeu sua mão e disse:

- Recupera teu caráter e tua índole de homem de luta, porque se entregar por inteiro diante de um abismo não é ato de bravura e nem provas com isto que venceste o desafio. Antes, negas a formosura da vida por algo que ante ela nem é tão grande assim.

Ao que respondeu o homem do abismo:

- É enorme o desespero da luta diante daquilo que se busca e não se pode alcançar. Enormemente igual é o cansaço daqueles que buscam e esperam por longo período sem nada encontrar. Se não encontramos a solução, porque em mares tenebrosos continuar a navegar? Então eu desisto de tudo e deixo os remos do meu barco nestas águas naufragarem.

- E por que não pegas tua barca e a direcionas para longe deste mar? Não é pulando no abismo que encontrarás a solução. Queira erguer teus braços e enfrentar com bravura o tenebroso vento que sopra agora diante deste abismo e também sobre tua barca que se encontra perdida sob forte tempestade em alto mar.

E o vento soprou com barulho, espalhando entre os dois homens seu violento uivo. E o homem que estava diante do abismo permaneceu calado durante alguns segundos. Olhando sempre para dentro do buraco profundo, com o mesmo olhar vago daqueles que da vida não têm mais o que esperar. E não achando mais nada que o tornasse homem maior que o desafio, ele abriu seus braços e se deixou cair por inteiro enquanto o vento uivava sem querer parar.

Foi então que aquele que o tentou ajudar saiu correndo para a margem diante do abismo e, olhando para baixo, viu apenas um homem que de braços abertos se entregava ao seu desafio. E durante a queda ele foi se tornando homem pequeno até não mais existir diante da vista do outro homem que agora também estava diante de um abismo.

II – Sobre O Pensamento do Homem Diante do Abismo

E quando o primeiro homem estava diante do abismo, seu único pensamento era pular dentro dele na tentativa de que, com isto, nada mais o importunasse e nada mais se tornasse infelicidade em sua existência. Porque a vida, para um homem que se encontra diante de um abismo, nada mais é que um grão de areia caindo na imensidão do mar profundo.

Diante do abismo, enquanto olhava para baixo, sob o sopro do vento e sob indícios fortes de novas tempestades, ele recebia flashes em memória de imagens concisas sobre a retrospectiva de sua própria vida antes de decidir com ela acabar.

E questionava-se sobre o valor da morte ante a dura carga que era obrigado a transportar. Questionava-se sobre toda sua sorte pensando que jamais nenhum outro homem poderia de tão pouca desfrutar. Também a cerca da existência e da tristeza de se viver a vida quando tudo nela já não mais reluz como prata polida, vendo sob todos os aspectos tudo que nela há de bom se desvalorizar .

Então o pensamento deste homem que estava diante do abismo se reduzia à formas concretas de que a única coisa que vale da existência, diante da falta de sorte, é encontrar o buraco mais profundo onde nele se possa atirar tudo aquilo que não se deseja. E acumulando-se isto em alto grau de insatisfação, ele desiste de tudo e resume este amontoado de insatisfações à sua própria vida como causa principal de todo o mal. E sendo isto, enfim, tudo aquilo que não se deseja, ele diz:

- Ora, pois se a vida é tão injusta com o homem, pois se a tempestade não se cansa de causar misérias, importando toda sorte de malefícios que não pode um homem suportar em seu grau maior de desespero e dificuldade, que há ele de esperar do tempo? Que cure suas feridas? Que amenize a tempestade? Pois se nem mesmo o vento lhe sopra no mesmo sentido, e se no horizonte novas nuvens negras lhe parecem se aproximar, não será para longe de um buraco profundo que este homem tenderá a caminhar. Ao invés disto, será mais forte a idéia de que neste abismo é que este mesmo homem deve se atirar.

E ele, de forma inteiramente decidida, representando a maior parte dos que sofrem de seu mal, se deixa cair no abismo profundo sem escutar a palavra daqueles que estão a sua volta e que por trás da nuvem negra, debaixo de tempestades mais amenas ou com uma visão já mais apurada do que seja atravessar as tempestades que a atmosfera deste mundo nos proporciona, conseguem um novo horizonte enxergar.

E caindo no abismo este homem some. E por vias da providência, a tempestade que pairava sobre si, toma outro lugar. Então os homens que viram e ouviram os pensamentos do homem que no buraco profundo resolveu se atirar, pensarão sobre a vida e questionarão seus valores e se não forem convictos da vitória e demasiadamente acertados, farão de si novos homens diante de novos abismos onde em algum momento extremamente confuso eles também pensarão em se atirar.

III – À Cerca do Homem que viu um outro diante do Abismo

Em meio à tempestade presente, que prometia um dilúvio de estado incontrolável, um homem havia acabado de presenciar um suicídio.

O Vento forte continuava e, cortando o céu, raios estridentes o iluminavam. Sob a estrondosa nuvem negra que, na visão do homem que pulara no abismo, jamais teria tido chances de passar, estava o outro a observar.

Sob aspecto reflexivo, também abismado, vendo o outro em baixo, caindo no abismo, o homem pensava consigo que depois de ver tamanha desgraça também não mais poderia suportar o caminhar da vida e sua complexidade.

Ele, que tentara impedir que o outro se jogasse dentro do buraco profundo, que tentara o socorrer quando tentou se livrar das desgraças do mundo, permanecia perplexo ao vê-lo, depois de tudo, caindo num abismo do qual não teria chances nenhuma de retornar.

Então, ao ver o outro homem deixá-lo sozinho, colocou-se de quatro e observou pela primeira vez a profundidade de seu abismo. O homem transportou toda aquela imensidão vazia para dentro de si e dos seus olhos jorrou uma lágrima que se perpetuou no vazio daquele espaço.

Debaixo de forte chuva, que parecia ser mais forte para aquele que estava diante do abismo do que para o que nele havia se jogado, ele também pensou em se suicidar. (Para aquele que contempla tamanha miséria é impossível não querer se livrar da dor de forma tão rápida quanto a que um outro conseguira se livrar.)

Ele, ao vislumbrar o fato ocorrido, cativou em seu íntimo um imensurável desencanto pela vida. E isto ocorrera porque nunca havia enfrentado tamanha tempestade. Chorava com tanta fúria e intensidade quanto a do vento que soprava sobre ele e a do trovão que ecoava pelos céus naquele instante.

Então, sob a escuridão que se fazia naquele momento, e ainda sob a tempestade incessante, esse homem se levantou e chorando descontroladamente, expressando externamentem toda dor que havia em si, ele parou e encarou o buraco mais profundo.

E observando-o, ele tomou a decisão:

Tinha visto que quando o outro homem pulou no abismo a tempestade que pairava sobre ele amenizara, já que ele a ela havia se entregado. Agora a tempestade estava sobre ele: o homem que observava. Toda a história conspirava a favor de seu fim: Até mesmo o vento que soprava incentivava sua queda no buraco profundo. Seu desejo de livrar-se da tempestade contribuía para o ato, já que ele também à tempestade queria se entregar por achar que não conseguiria continuar resistindo. No entanto, vendo o homem que mesmo pulando no abismo a tempestade não cessaria, e ele não mais teria a chance de um dia vê-la passar, resolveu abandonar a idéia e seguir, mesmo que sozinho, sob a forte claridade dos relâmpagos e chuva intensa, a estrada onde tudo em volta parecia se destruir sem deixar indícios de quando iria se regenerar.

Ele se afastou do abismo e caminhou chorando pela estrada que lhe levava à vida. No caminho encontraria pedras, atoleiros, despenhadeiros e tantos outros abismos, bem como novas tempestades. No entanto, estaria andando e aos poucos se afastando da imensidão vazia que não somente habitava dentro dele, mas que às vezes também habita em cada um de nós. Caminhando, aos poucos ele foi sumindo e pela estrada, foi se despindo até ficar completamente nú, se despedindo assim do amargo sofrimento, que num futuro breve, se tornaria apenas parte de um passado funesto.

Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 20/12/2006
Reeditado em 25/08/2007
Código do texto: T323332
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