O Sobrevivente

prdiegocosta.blogspot.com

Você já sabe me conhece muito bem
e eu sou capaz de ir e vou muito mais além
do que você imagina... Eu não desisto
assim tão fácil, meu amor, das coisas que
eu quero fazer e ainda não fiz...

                             Fábio Júnior
 
    Enquanto se concentrava na imagem que o espelho lhe devolvia entre os vapores da água morna e do cheiro de lavanda da espuma de barbear, não se furtou ao pensamento de que estava feliz por estar ali. Logo mais um amigo receberia uma comenda, uma honraria do governo de seu estado, em reconhecimento por anos de trabalho e bons serviços e seria um dos muitos amigos que iria lhe abraçar, naquela noite de merecida celebração.
    Estava sozinho, mas de alma leve. Sua companheira habitava outros mundos e nem sempre podia acompanhá-lo em momentos como aquele. De verdade, ela não tinha era paciência para aquelas conversas intermináveis sobre política e economia e menos ainda para os rapapés sociais. Estava tranquilo, pois sabia que não tão longe dali, em sua cidade, seus filhos e ela estavam bem, cuidando de seus interesses mais imediatos e não havia com o que se preocupar.
    Pensou que num tempo não tão distante, essa leveza de alma era um sonho, um desejo quase impossível. Um tempo não tão fácil de lembrar, mas necessário para a compreender a si e aos momentos que ora vivia, pois todo e qualquer processo vivido, seja de sofrimento ou de celebração, exige de nós algum esforço de compreensão e assimilação e, depois de tudo que vivera, se considerava um sobrevivente.
    Olhou-se mais uma vez no espelho e espalhou a loção hidratante pós barba. Já na varanda olhou o fim de tarde de céu avermelhado e suspirou.Entrou para se arrumar para a festa.Tudo estava bem e seria uma noite muito especial.
    Lembrou do tempo em que viver algo assim era impensável.De um tempo de tristeza em que ficava observando sua companheira arrastando-se pela casa, soturna, silenciosa, só respondendo em monossílabos. Qualquer tentativa de abordagem era respondida com evasivas ou com respostas curtas, sem direito a réplicas.
    Como se não ligasse nem para si, fazia tudo como um robô: comia, dormia, tomava banho, trabalhava e até falava ao telefone porém sem nenhum entusiasmo, como se nada mais lhe chamasse a atenção, merecesse seu empenho.
    Aos poucos, ia se distanciando dele e dos filhos, que tentavam inutilmente puxar conversa na hora das refeições. E de tanto ouvirem “agora não, estou comendo”, “agora não, estou ocupada” “agora não, estou com sono” desistiram de conversar e quem sabe aliviados por serem deixados em paz, seguiram suas vidas sem maiores transtornos. “Mãe é bicho esquisito, mesmo. Ora pega no pé, ora alivia. Deixa ela no seu "mundo de silêncio" que ‘tá’ bom...”
    Como marido que conhecia um pouco mais sobre a companheira, inquietou-se o quanto pode. Estaria doente, deprimida?Aquela infelicidade não era comum, mas só podia ajudá-la se ela permitisse. Tentou arrancar-lhe alguma informação: se fora ao médico, se havia recebido alguma notícia triste, se ele tinha de algum modo lhe magoado e a pergunta cuja resposta apavora os casais monogâmicos: se encontrou alguém interessante.
    A resposta veio no olhar incrédulo com a pergunta e na frase proferida: “Está brincando, não está?” Virou-se e ficou dias em silencio.
    Como nada surtia o efeito desejado, se reservou o direito de aprender a pensar num mundo sem ela, mas se perguntava até quando suportariam viver sob o mesmo teto feito inquilinos de uma pensão, mal se cumprimentando nas horas das refeições e na hora de dormir.
    Tinha consciência  de que haviam constituído uma linda família, vivido até então uma história boa, de convívio terno e fraterno mas parecia que não havia mais nada a  dizer um ao outro.
    Entre os parentes e amigos, parecia tudo bem. Eles não brigavam, eram uma dupla socialmente adorável, bem-humorados, brincalhões, afáveis, tantas afinidades percebidas. Era mesmo assim, da porta de casa para fora. Dentro, ela voltava para o seu "mundo de silêncio".
    Munido de paciência, continuou fazendo mais algumas tentativas de aproximação.Em algumas logrou êxito e quando achava que tudo ia ficar bem outra vez, ela voltava para o seu "mundo de silencio".
    Feito Pilatos, lavou as mãos ao fim de uma longa conversa consigo mesmo: tinha consciência do quanto ela era importante na sua vida, como pessoa e mãe de seus filhos e sabia o quanto era importante na vida dela nos mesmos termos, mas compreendia que ela tivera uma criação que entendia o casamento assim: depois que viviam o auge da paixão, amor era cuidado, afeto, companhia para a travessia dos dias vindouros, sexo vez ou outra, como necessidade fisiológica, que poderia muito bem ser substituída por academia ou reza.
    Sem nenhum ressentimento e com toda maturidade possível compreendeu o momento vivido por sua companheira, mas não se sentiu obrigado a concordar com ela. Queria mais da vida do que esse viver “funcionário  público” com cartão de ponto do sexo aos sábados e compromissos sociais aos domingos.
    O afeto, o carinho e o lugar de companheira em sua vida permaneceriam inalterados não só por compromisso ético e afetivo assumido como homem, mas por reconhecimento de que agora, na maturidade, era desse tipo de companheiro que ela precisava e ele jamais lhe faltaria.
    Consciente de sua condição de ser que refletia e buscava, diuturnamente, a felicidade dos seus, mas não descuidava da sua, olhou para a noite que cobria a cidade com seu manto, admirou a beleza das luzes da cidade que se acendiam e revisitou cada sonho que ainda acalentava  firmando em todos e a cada um o propósito de não abrir mão de nenhum deles.
     Ligou o carro e rumou para o seu compromisso.