Elas não conheceram Anézio Gilpato.

Gioconda estava preste a estilhaçar todas as xícaras, acordou cedo, eram três, quatro da manhã, um escuro frio que o sol expandia, tremores fartos iam andando pelo corpo, vinha então em seu indivíduo os dias mentidos e as mãos de Filomena que era princesa, sardenta, que às vezes passava-as nos seus braços ao longo do corpo, desiludidos depois dos diversos gritos, os diabos soltos dentro de salas, quartos frágeis e roubados, arranhados.

Sua alma estava submergida, falava línguas estrangeiras, amar o mundo poderia ser antiamericano, viver a vida poderia ser um desperdiço, diante de um farto, obeso amor incrustado nos esconderijos da geladeira, ao lado do pernil e das línguas esverdeadas de cavalo bom, às vezes um blues chiado nos cômodos de madeira, às vezes imagens introspectivas na tela do televisor, às vezes também calendário de avesso riscado como que se esperasse um dia, mas esse dia nunca vinha, e então mais de cinco calendários riscados de vermelho estavam passados dali, e o gosto sem cultura categórica, desaprendizagem afetiva, ligou o microondas um instante, vazio, até que estouros começassem e ela se sentia menos exibida, ele ali era já um grande clichê depressivo, sem gosto e sem rosto. Deitou-se em cima da mesa um instante, derrubou os vasos ao chão, uma cadeira caiu. Ouviu-se à bala. Acerta.

Girando sobre a mesa blues carbonato a molhava. Acerta. Rolava como que sentindo partículas de areia diante das águas estonteantes, caiu-se dentro de um longo disparo, as águas banhavam-na de cegueira, percebia-se luz sobre a mesa e todo o resto esquecido num escuro vulgar, bem posicionado. Caiu dentro da roleta russa dos dias transpostos, acertados, bala. Água sobre a mesa sem transbordar, ficando vermelha, riscos lunáticos desenhando no teto, acerta, bala, formas sentidas e não decifráveis, açúcar caindo da boca e escorregando pelo corpo, gritava – despeço-me aqui da noite, dou-me porque sou teu verso personificado, dou-me eu lírico sol no radio rouco, dou-me a ti, casaco de couro sentimental! Dou-me! Dou-me! -, movimentava-se mais instantaneamente, rasgava-se em mulher que sobre a mesa se movia Isadora Duncan e noturna em claro, águas vermelhas, agora azuis, agora cor de paradeiro, cor de casaco de couro vivo, mirava-se em sol preso, desesperado, dentro da cozinha, sol que focara-se apenas nela, mirou-o chorando, batendo nas grades, com a caneca de água andava pelas ferrugens, acerta. Bala.

Via naquele teto a compensação da sapiência, vindo às palmas suavemente como garoa de viagem, jóias que caiam fora do lugar, as xícaras continuavam quebradas, sobre o chão, todas de pontas rumo ao céu, vicissitudes fenecidas.

Voltava a gritar, chorando, de cabelos tapando a cara, barra de vestido já sobre os quadris, suas pernas brancas deixavam-na escorre-la, escorria verticalmente devaneios ocos, virtuosos e esperançosos, vazios como entre quatro paredes trancando a noite, despedindo-se no silêncio barroso, estúpido, cochas jogadas num canto do quarto, cama vazia, presa dentro do armário tremendo como uma criança perdida, nos braços de um parteiro homicida enforcando-a em cadarços de All Star desenhado com caneta Bic pequenos pênis apodrecidos.

Uma rádio pelo avesso contrário, blues de lenços de papéis esfarelados em mãos carcomidas de impossibilidades tamanhas. Espera-se isso supostamente de tudo.

Toque de telefone além. Toque outra vez.

- você ligou pra mim, e, agora eu não posso te atender, como sempre não é? Na verdade não tenho coragem de te atender, fiquei medrosa, tão cagona... Fala alguma coisa, eu vou ouvir, eu vou, mas. A gravação parava ai, e então Filomena começava a cantar, todas as madrugadas se desdobravam dessa forma dissoluta, dessa forma apaixonada, verão sem ruas na cidade, cidade antipoetizada, tem-se as árvores que fazem a sombra do breu. Dolorido. Alcaparras?

- agora dorme. A ligação então acabava, enquanto ela cantava Gioconda estagnava sobre a mesa, por mais que estivesse desconfortável, sequer respirava perpendicular, os olhos secavam de não piscar, as lagrimas escorriam então pelos cantos da face como um vazamento de tinta guache vermelha pelas bordas do Sulfite, passando pelos cabelos, e indo molhar a nuca, sentia-se um frisson, águas frias estas, não? Era ai então que percebia a mudez do telefone, era ai então que afrouxava, pré-supostamente relaxava, relaxar é um ato que o ser humano não sabe mais fazer, ele apenas deita feliz no travesseiro, e adormece, relaxar poeticamente, ninguém quase consegue, talvez por isso estou aqui. Não.

As águas contidas sobre a mesa finalmente escorriam até o chão, banhando os cacos de porcelana, das xícaras vacilantes, percebia que suas pernas estavam pungentes, arrumava a barra da saia até os joelhos, entortava a coluna pra se fechar fetalmente, indo de encontro a si, ou cuspindo em si, ou beijando a si, ou. (Não sei, ela não me conta).

Desceu, foi até o sofá, pegou o remoto controle na mão um pouco fraca, ele pesava como nunca, ligou-a, a claridade da tela logo bateu severamente em seus olhos, o que fez semicerra-los, logo se acostumou, e focou sua, tua atenção nas imagens comunicadas, eram coisas fúteis que a aurora mostrava, ou pré-manha, claridades cobardes podiam ser vistas sutilmente pelas cortinas, começava-se jornais regionais, que são os mais doidos, pirados, passava de um canal para outro, a dor no corpo começava a ser acionada pela desfocalização de sentimentos, lembranças espalhadas num chão branco, riscado de caneta preta, versos podres, em júpiter sonífero. Parou num canal de desenhos, começou a assistir o Pato Donald, cochilou. Amanhã o Jorge vem me ver.

Junior Monteiro
Enviado por Junior Monteiro em 25/12/2006
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