106 – A TERRA NOS ESPERA...

Hoje ele levantou cedinho, bem mais cedo do que de costume, abriu janelas e portas da sua casa, tomou um magro café e pacientemente se pos a esperar.

Setenta e dois anos vividos, viúvo, seus filhos caminharam e se descaminharam pelo mundo e com ele pouco se importavam, cada um seguia na sua luta sem tempo para um pai complicado, que ainda conserva a sua autoridade e seu orgulho.

Os velhos amigos chegando, chegaram e se ajuntaram na varanda, contaram velhas estórias conhecidas, repetidas, beberam as bebidas que sempre beberam, se lembraram de tantos acontecimentos que marcaram suas vidas, se abraçaram e choraram no despedir.

Até tentaram cantar aquelas velhas canções que tantas vezes já cantaram, mas desta vez suas vozes embargadas pela emoção do momento, emudeceram.

Ele com seu passo lento, calmamente caminhou por todos os cômodos daquela casa em que vivera por muitas décadas como se a tudo fosse filmando, no seu quarto, a velha cama coberta com lençóis divinamente bordados pela sua amada, sentiu saudades dela, o seu perfume inexplicavelmente em tudo assomava, suave melodia na voz dela lembrando que ele já estava atrasado para o banho, ouvia, e belos jogos de toalhas e em todos eles a letra inicial de seus nomes entrelaçados sobressaia, bordados... Pensava... A falecida deixou tantas coisas, mas a coisa mais importante e mais valiosa ela pra sempre levou, a felicidade que existia nesta casa...

Sem pressa alguma pelos quartos dos filhos ele adentrou, camas e mais camas, roupas e mais roupas ainda estavam lá, soluçou ao lembrar do nascimento das crianças, das algazarras que faziam antes de dormirem, nitidamente os viu sonolentos, uniformizados indo para a escola.

- O tempo passa tão rápido, a gente nem vê, os meninos se fizeram homens, para além do horizonte debandaram.

Sem pressa alguma passeando pela cozinha o ontem se fez presente no barulho de pratos que parecia ouvir, sentiu o aroma da comida e viu a sua amada sempre sorridente no corre corre para que tudo fosse servido na hora certa...

- Que saudades dela, depois do seu falecimento esta casa nunca mais foi a mesma, ela levou toda a alegria e toda a felicidade, levou o brilho e a cor de todas as coisas, deixando um vazio que nunca foi preenchido.

Caminhou pela sala, televisão desligada, a sua amada sentada naquele velho sofá de couro assistindo suas novelas preferidas, imaginou... Pelas paredes, de fotografias amarelecidas saltavam cenas encorpadas de vida de tempos idos agora revividos acenavam no despedir.

Pensou de si para si...

-Trabalhei tanto, economizei tanto, me privei de tantas coisas para formar uma família, hoje estou aqui sozinho me despedindo deste sonho, ou melhor, desta realidade, mas não me sinto arrependido, se pudesse eu faria tudo igualzinho outra vez, fui feliz, mas até a felicidade tem o seu tempo, e o tempo da felicidade na minha vida com toda certeza já se foi.

- Aceitar e esperar é o que resta para todo o ser humano que se envelhece, que não mais consegue cuidar de si, que é dependente de favores, me rendi, não por covardia, mas por um melhor padrão de vida e é por isto que hoje estou mudando para uma casa geriátrica, onde na certa terei menos liberdade, menos privacidade, mas pelo ao menos cuidarão de mim, terei por companhia pessoas idosas, iguais a mim, compartilharemos os nossos momentos de alegrias, tristezas e de fartas recordações, se eu fosse morar na casa de qualquer um dos meus filhos na certa seria um peso a mais a ser carregado, um estorvo, tiraria a liberdade deles e a minha também, melhor, melhor é ir para o abrigo dos velhos, conviverei com pessoas parecidas comigo, do meu tempo, e com muito tempo para contar estórias daqueles tempos em que nós fazíamos a estória.

Ao fechar a porta de entrada da casa, numa última olhada adentro percebeu que tinha esquecido um bem valiosíssimo, uma fotografia, nela, ele e ela ainda jovens no altar da igreja abraçando felicidades se beijavam sacramentando aquele casamento tão desejado, carinhosamente aquela fotografia juntou às coisas que levaria.

Na rua seu olhar melancólicamente se despediu daquela casa que um dia mandara construir, lembrou dos móveis que a esposa caprichosamente escolheu para mobiliá-la, das festas de natal, dos presentes, das alegrias e das tristezas e de tantas outras coisas, mas tudo um dia tem o seu fim, tudo em nada se torna, entre abraços conhecidos e desconhecidos resistiu o quanto pode, ele não queria chorar, mas chorar não é vergonhoso, chorar é um desabafo da alma, e ele chorou, se sentiu criança outra vez, o motorista do táxi arrumou as suas coisas dentro do porta mala, e lá de dentro do veículo ele acenava lágrimas e emoções descontroladas...

Partiu!!

A vida passa tão rápido e a terra por nós espera!

Mas isto não importa, o que mais importa é que tenhamos vivido momentos em nossas vidas com tamanha intensidade que nos marquem para sempre, e serão estas as poucas coisas que levaremos desta curtíssima existência... Lembranças...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 17/10/2011
Reeditado em 19/10/2011
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