Lembranças Extintas

A vida é valiosa demais para ser desperdiçada. A minha tenho certeza que é muito bem aproveitada, apesar de todos os sofrimentos persistentes. Sei que não devemos alimentar esses sentimentos, mas quando eles estão presentes no dia a dia, faz a dificuldade aumentar.

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O sinal do intervalo avisou a todos que era hora de sair das salas e curtir com os amigos. A escola Doutor Magalhães estava sempre lotada em seu pátio inferior. Todos desciam as escadas quase que numa disputa para ver quem chegava primeiro na cantina e comprar o desejado lanche. Já eu caminhava sempre calmamente porque o meu salgado ficava separado todos os dias. A esperteza é uma virtude de poucos, graças a deus, se não já era a minha garantida mastigada.

Numa das mesas sempre se sentava Carolina, Julio, Matheus, Caio, Adriana e eu. A conversa rolava à solta sempre com novos assuntos. Somos da mesma classe, e conseqüentemente amigos, há cinco anos. Muito tempo e muita história de vida entre nós. Essa reunião no intervalo era todos os dias e mesmo assim não caía em monotonia. Pelo contrário, sempre me confortava.

Aquele era o momento em que eu esquecia todos os problemas que já passei e que passo. Fazia-me esquecer de que a minha casa não é alegre. Que fora dali eu me sentia num poço escuro sem saídas. Infelizmente durava pouco. Em vinte minutos tínhamos que subir novamente para aula. Em seguida, algumas horas depois, o dia escolar terminava. Toda vez em que o sinal da saída tocava, eu levantava com tristeza. Nesse dia nada mudou. Arrumei a mochila e levantei cabisbaixo. Dessa vez Adriana me observava, não como sempre, pois eu era o último a sair da sala.

- Tudo bem Tiago? – perguntou-me

- Sim, tudo ótimo.

Tentei disfarçar e acreditei que havia conseguido.

Minha residência não ficava muito longe da escola. Cerca de quinze minutos a pé. Saí pelo portão cumprimentando o porteiro Jorge.

- Vá com Deus Tiago. – disse-me como sempre fazia.

- Ele está comigo Jorge. – respondi como num ritual casual.

Eu caminhava sem saber se ia rápido ou lento. Na verdade eu não sabia como chegar a casa. Isso se repetia num cotidiano extremamente infeliz. Apesar de tudo, finalmente cheguei onde deveria. Eu estava de frente para a porta me preparando para entrar. Quando entrei, vi que ninguém estava por perto. Passei por toda a parte de baixo da casa. Virei-me para a escada e a subi. Fui ao meu quarto deixando a mochila e os tênis largados em qualquer canto. Depois me aproximei do quarto da minha mãe.

Mariana era uma grande mãe. Cuidou muito bem de mim e do meu pai até a morte dele. Quando eu tinha treze anos, ele sofreu um acidente de carro onde estava também minha mãe. Meu pai faleceu no instante do impacto em que o carro bateu contra um ônibus. Minha mãe ficou com seqüelas para toda a vida a partir dali. Isso foi há quatro anos. Agora lá estava eu pronto para entrar em seu quarto.

Ela estava na cama dormindo, mas logo que entrei acordou e tive que fazer o que eu sempre fazia.

- Mãe tudo bem?

Ela me olhava com um rosto espantado. Era como se não me conhecesse. E realmente era aquilo. Minha mãe com o acidente agora sofria de um problema de memória muito perigosa. Aos poucos tudo se agravava. Ela não sabia que tinha um filho, pelo menos não lembrava, toda vez em que acordava de um longo sono. Eu tinha que tentar fazer ela acreditar que era minha mãe. Eu contava a mesma história todos os dias. Aquilo era realmente triste.

Há todo momento eu pensava no passado, no quanto ela demonstrava amor por mim e eu por ela, como ainda mostro. É difícil ela ter aquele comportamento novamente, tendo que todos os dias se lembrar de algum passado apagado de sua mente. Para mim isso me mata aos poucos. Ter uma mãe que não sabe que tem um filho que a ama muito. Que ela um dia vai esquecer como andar, de como comer, de como falar. Eu apenas a abraço sempre tentando demonstrar que tenho um carinho enorme por ela e que a amo. Como eu fiz novamente naquele dia.

Um tempo se passou e descobri graças ao médico que a acompanhava, que a saúde da minha mãe se agravava num grau alarmante. Ele me comunicou que o tempo de vida da minha mãe era agora curto. Como agora vou reagir? Não sei. Apenas devo continuar a fazer o que sempre fiz. Demonstrar amor por ela todos os dias, a fazendo lembrar que ela tem um filho, que ela tem uma vida.

De certa forma, a morte naquele momento era confortante para minha mãe, pois apesar da memória não funcionar, seu espírito sabia o que acontecia e com certeza sofria. Mesmo sendo estranho, eu espero por esse dia, em que ela descanse em paz parando com o sofrimento.

-- Essa não é uma história verídica, mas pode exister na casa de alguma família. --

RENAN MOTTA
Enviado por RENAN MOTTA em 09/11/2011
Reeditado em 24/08/2012
Código do texto: T3326748
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