RETRATO DA VIOLÊNCIA URBANA
 
 
Eu seguia em direção ao trabalho, sem muita vontade, naquela manhã quente de verão. Queria mesmo era estar na praia, dar um mergulho nas águas mornas, em um paraíso particular, onde poderia refletir, cuidar de si, fazer absolutamente nada! Afinal, eu merecia este descanso!
 
Freiei o carro em meio à obstinação de meus pensamentos; o sinal havia fechado, naquele cruzamento da Rebouças com Avenida Brasil. Ouvindo  Chico Buarque – velhas recordações dos tempos de universidade, em que varava noites, com meu grupo de estudos, embalada pelo som de “O que será, que será...” e outras tantas. Espreguicei, demoradamente, para aliviar a tensão que o trânsito maluco desta cidade nos impõe a cada dia mais e mais. Ao lado, aproveitando o tráfego parado, um casal se beijava. O amor é lindo! Entreguei-me aos devaneios, que o momento me permitia.
 
Fui despertada, repentinamente, dos poucos instantes de delírios, por alguém batendo, insistentemente, na janela do carro. Voltei à realidade; certamente o sinal já havia aberto e eu nem percebi – o que não é normal, pois sou muito atenta ao volante. Não era, ele continuava vermelho para mim.
 
As batidas no vidro de meu carro, na janela ao lado do motorista (no caso, eu), tornaram-se mais intensas e a minha ficha caiu. Estava sendo assaltada por um garoto – no máximo uns 16 anos – gritando para que eu abrisse o vidro, ou então... Percebi uma arma em suas mãos, apontada para mim. Se estava engatilhada, não sei dizer e muito menos o modelo (ou marca, sei lá) do revólver.
 
Levantei a cabeça com cuidado, muito calma, sem alterar a voz e lhe disse:
 
- Calma, meu filho; este vidro não é automático, é na maçaneta mesmo (era mentira, só pra ganhar tempo), vou abaixá-lo, devagar e entregar-lhe o que tenho aqui comigo. Mas você precisa ter calma, o sinal ainda vai demorar para abrir e, se nós dois nos estressarmos, não vai resultar coisa boa – para nenhum de nós.
 
-Então anda logo tia, tô cum pressa; vamo, vamo logo, senão vai levar bala, eu num to brincano.
 
- Tá certo, já entendi. Mas, me diga: o que você ganha em me matar? O sinal está fechado (enquanto eu falava, eu encenava a procura da bolsa, na parte de trás do carro), e, se você me der um tiro, é bem provável que alguém te atropele, tá tudo muito cheio e todos já perceberam o assalto; estão apenas esperando o momento certo.
 
Não sei bem porque, mas ele relaxou a mão que empunhava a arma; talvez o cansaço, ou já estivesse encehndo o saco com todo aquele discurso – que inventei na hora. E, enquanto eu falava, não tirava os olhos do farol, bem a minha frente.
 
Abriu, finalmente. Todos os carros parados naquele sinal arrancaram a um só tempo, com um ronco infernal e, um deles, que a tudo observava, parado ao meu lado, deu uma guinada, jogando o assaltante ao chão, com arma e tudo. Com o carro já engatado na primeira marcha, dei um arranque de fazer inveja ao Massa. Ainda deu para ver, pelo espelho retrovisor, que o garoto não se ferira; levantou-se e saiu em disparada, avenida abaixo. Saí pela primeira rua à direita, para fugir de um possível ataque de raiva do assaltante e escapei.Sã e salva, graças a Deus!
 
Não sei se por acaso, sorte ou obra do universo, mas foi por um triz!
 

(Milla Pereira)



Este texto faz parte do EC
POR UM TRIZ
Saiba mais, conheça os demais participantes.
(http://encantodasletras.50webs.com/porumtriz.htm)