Tuesday Morning Special

Sim, finalmente minha grana tinha acabado.

Aqueles dois meses tinham sido despesas pesadas e imprevistas: chuveiros que queimam, fiação elétrica do banheiro, duas calças novas, pois as minhas já estavam em petição de miséria e não serviam nem para o Exército da Salvação, aumento anual do condomínio e uma noite um tanto dispendiosa com a Lay com direito até a champanhe francês para a minha boneca.

Tinha vinte e seis reais na minha conta bancária e ainda teriam cinco longos dias até a Leda pagar meu décimo terceiro. Merda. Fico irritado quando estou sem grana! Já devia um bom dinheiro no Bar Eslavo e no pub inglês. No Alaor então nem se comenta. Pedir empréstimo no banco nem pensar porque eu posso ser louco, mas não sou burro. O João Mendes era outro quebrado como eu. Onde eu iria recorrer? Pedir um vale para a Leda?

Claro que – para variar – eu tomei um grande porre na noite anterior só de raiva. Fui para casa daquele jeito e desmaiei na cama e fui acordado às nove da manhã do dia seguinte com o meu telefone celular berrando. Terça Feira ainda.

Que diabos. Era uma fulana de voz doce e profissional e combativa que me disse que eu tinha um dinheiro para receber de um artigo maluco que eu tinha escrito para uma publicação metida à besta qualquer e me deu o endereço e as instruções para retirar meu dinheiro. Em resumo eu teria que atravessar o centro da cidade. Agradeci as informações e ela desligou e fiz o mesmo. Levantei e tomei uma bela ducha tépida e me vesti , liguei para aquele pasquim indecente em que eu insistia em trabalhar avisando que tinha que resolver um problema pessoal e ganhei a rua. Tinha três cigarros no meu maço. Até levantar algum teria que dar. Comecei a caminhar. Fui descendo a rua e encontro o Ênio, um velho camarada meu. Falar do Ênio é moleza. Nem precisa gastar o espaço de um conto para descrevê-lo e contar rapidamente sua história. Conhecemo-nos no final da adolescência quando eu estava morando nas bibocas mais boca quente da cidade e ele num suntuoso apartamento um por andar da Travessa. Ficamos meio que amigos e cada um foi tocar a vida. Eu trabalhando como pau para toda obra e ele aproveitando a pensão de alta funcionária pública federal da sua mãe. Logo depois se envolveu com uma tipa de Santa Catarina que de anjinho só tinha a cara. Quando a mãe do Ênio faleceu, eles se mudaram de mala e cuia para aquele prédio e ele descolou um trampo de segurança noturno num hospital. Trampo moleza. Só ficar com um três oitão no cinto e ficar cantando as enfermeiras e funcionárias e pedindo pizza de calabresa pelo telefone. Beleza. Devo mencionar que ele fez uma filha nessa garota. Certa manhã ao voltar para casa ele depara com uma cena grotesca! Todos os móveis tinham sido levados com exceção da cama, um dos televisores e o seu aparelho de som. A mina tinha levado tudo, inclusive a pensão e a filha o acionado o cara na justiça. Ele vendeu o apartamento por uma fração do que valia no mercado e se mandou para São Francisco do Sul. Torrou a grana em oito meses em pó, putaria e uísque e teve que voltar corrido para Curitiba só com a mochila com meia dúzia de roupas e começou a viver a caridade alheia comendo quando dava e morando numa pensão fétida. Bebia pinga da pior qualidade e começou a apresentar um bando de doenças e complicações, contudo nunca morria. Leptospirose. Cirrose Alcoólica. Tremor nas mãos. Terríveis delirium tremens que duravam horas. Diabetes. Calvície precoce. Duas pneumonias. Diabetes. Pressão alta. E continuava insistindo em tomar até ficar pegajoso e desagradável e de fez um quando resolvia ficar uns dias sem tomar banho. E era isso que eu tinha encontrado naquela bela e rara manhã de sol e calor. Veio até mim.

-Carlo Malta a essa hora da manhã de pé? Gracejou.

-É o trabalho. Alguém tem que fazer alguma coisa nesse país. Foi a minha resposta.

-Tem um cigarro?

-Tenho que comprar um maço.

-Onde você está indo?

-Para o centro da cidade. Informei-lhe.

-Vou com você até a Rua do Bar do Pedro. Ele está abrindo e eu quero pegar meu litro. E começou a andar do meu lado e tagarelar todas as fofocas do bairro. Quem tinha morrido naquela semana, que estava internado na reabilitação, quem tinha se juntado e separado, quem tinha “saído do armário”, quem tinha feito isso e aquilo. O que eu tenho com a vida miserável dos outros, porra? Já tenho meus problemas para resolver e é o que me basta. Convivia muito bem as minhas neuroses e para mim estava de bom tamanho. Em cinco minutos foi informação demais para minha cabeça e eu nem tinha preparado um bom charo. Deixei-o ainda falando alto no bar e segui meu caminho. Decidi ir pela Rua XV para cortar caminho. O endereço que eu tinha era um pouco além da Universidade Federal. Fui trotando no meu passo gingado de borracho. Óbvio que todos os craqueiros, os débeis mentais natos e hereditários, os velhos aposentados desocupados, os estudantes matando aula, os punks retrô vendendo seus fanzines toscos cheios que anarquismo de colégio e erros de português, o imitador do Raul Seixas tocando suas musiquinhas de dois acordes, e mais adiante outro imitador do “Metamorfose Ambulante” fazia a mesma coisa, os acrobatas de semáforos e toda essa fauna estavam por ali. Parecia que todos os doidos, frustrados, recalcados, neurastênicos e cães sarnentos faziam ponto ali. E depois ainda me vem um filho da puta dizer que isso aqui é “Cidade Modelo”. Modelo de quê, caretão? Isso aqui não passa de uma província barata que se acha capital. E esses seres esquisitos ainda são um pouquinho melhores que a pequena burguesia pseudo alemã que infesta as ruas com seus carros potentes e que não sabem mais o que fazer quando caí um pingo de chuva nos para-brisas e entram em desespero provocando maiores tragédias. E era com isso que eu o vi por detrás dos óculos escuros. O aroma daquele cachorro quente tradicional atingiu em cheia as minhas narinas e fez meu estômago roncar. Fazia exatamente 24 horas que eu não comia nada. Em dez e vinte e sete da manhã. Acendi o primeiro cigarro do dia. Estava chegando, só tinha que atravessar aquele calçadão. Dei uma tragada bem funda e continue minha marcha. Saco. Avistei de longo o Carbono. Negro, alto como eu, sem camisa e andando como se estivesse em pleno sambódromo. Conhecia a figura desde tempos do movimento estudantil. Pediu um cigarro como sempre e eu neguei. Pedi a segunda e eu o mandei se foder, e ficou me encarando por alguns segundo e seguiu seu caminho até filar um cigarro de outro imbecil qualquer. Que gente mais escrota! Vão trabalhar, cara! Se até o Carlo Malta trabalha qualquer rebotalho pode trabalhar. Continuei meu caminho e agora estava bem perto. Pedi informações sobre a localização do prédio e ele deu-me a direção. Agora vou pegar minha grana e tomar uns tragos, comprar mais um maço de cigarros mata ratos de filtro amarelo e comer algo. Quem sabe ficar mais uns dias de folga no jornal ou escrever em casa mesmo. Quando já estava quase chegando outro desocupado veio me pedir cigarro. Eu estava com o meu penúltimo aceso na boca e respondi para ele que não fumava. Entredentes. Mas será o Benedito? O governo proíbe fumar em bares e lugares fechados, faz a maior prevenção e o povão parece que está fumando como nunca? Só faltava encontrar o Batista de Pillar.

“Meus amigos são mais importantes

Que uma manada de elefantes.

Homem de deus”.

Era tudo que eu não precisava naquela hora do dia. Encontrei o prédio e subi pelo elevador. Décimo quarto andar. Bati em uma porta com o número 141. Era ali. A secretária veio atender e perguntou solicitamente o que eu desejava e eu me apresentei. Ela foi toda cordial e afável comigo. Enquanto ela buscava o envelope em alguma gaveta fiquei reparando em seus contornos e achei agradável pensar que eu até poderia colocar ali no seu buraquinho de fazer xixi. Ela me passou um envelope branco com o logotipo da publicação e eu abri e conferi ali na sua frente. Setecentas pratas por algumas divagações bobas? É assim que esse negócio funciona. Coloquei o envelope no bolso esquerdo dianteiro das minhas calças me despedi da moça, ela disse que era um prazer me conhecer e zarpei dali. Oba. Oba. Dinheiro. Adoro dinheiro. Dinheiro para mim é quem pica. Feito para gastar. Quando estava na rua outro despossuído maldito veio me pedir cigarros e eu lhe dei o último para me livrar dele. Para-raios de louco. É isso que eu sou.

Fui até o cachorro quente e pedi chope preto e um estanho. O dono do estabelecimento me saudou como sempre. Resolvi ficar por ali, todavia mudei de ideia quando me deparei com o Batista de Pillar vindo em minha direção. Pedi um para viagem, virei meus tragos de uma vez só e dei uma finta do Batista e tomei um táxi. Dei o endereço ao motorista e perguntei se ele trocava uma nota de cinquenta e ele disse que sim. Pendurei a conta no cachorro quente. Mais uma. Os Ingleses e os Eslavos iriam receber seu dinheiro hoje mesmo.

A vida é boa.

Só precisa de dinheiro, um teto, cigarros, tragos e baseados. A comida é consequência.

O problema é viver com essa gente chata.

E eles estão em todos os lugares.

Curitiba 30 de novembro de 2011, 30 graus celsius – Primavera.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 30/11/2011
Código do texto: T3365172
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