Cotidiano

Para Jussara Matheus dos Santos ( Vá em paz, "Doutora" ). Sempre vamois ter amar e admirar sua força e fibra.

naquele fétido quatro de pensão ele agora bebia um trago atrás do outro. coisa barata. não queria o sabor. queria apenas o estupor. queria estourar seu fígado. tinha recentemente passado por uma pneumonia dupla deitado numa cama de enfermaria de um hospital de caridade e não tinha conseguido morrer. era um verdadeiro milagre pois o médico lhe dissera que seu fígado estava bastante comprometido por anos e anos de descaso e maus tratos. os poucos amigos que lhe restavam, um ou dois, tinham tentado lhe doar sangue e um deles descobriu através dos exames que estava com HIV. mas ele se safara. sem um fio de cabelo na cabeça. emaciado. com a coluna lesionada. e com seu último dinheiro recebido quando teve alta comprou um fardo de garrafas de plástico com a cachaça mais pavorosa e barata do mundo e voltou para aquele pensionato que fedia, ele achava. resolveu se isolar do mundo. decidiu que o destino fecharia sobre ele. e começou a beber. uma dose levava à outra. matou quatro daquelas garrafas numa tarde e desmaiou na cama – que mais parecia um catre – por dois longos dias. quando despertou continuou a sua rotina. não queria rua, bar, praça. queria ficar ali naquele quarto. a humanidade não lhe dizia mais nada. sentia que aqueles meses no hospital tinham o feito perder a capacidade de conversar. mas conversar sobre o quê? antibióticos? soro? agulhas intravenosas? enfermeiras hostil e médicos que tratavam os pacientes como gado? não queria pensar. não estava grato por estar vivo. apenas mais perda de tempo. não tinha mais passado e nem presente e muito menos queria pensar no futuro. somente bebia agora pelo gargalo e fumava cigarros feitos à mão. não queria lembrar-se da esposa que o abandonou levando seu filho ainda bebê. não queria recordar de nada. seus pais há muito tempo mortos e enterrados. nenhum parente próximo ou distante. nenhuma tentativa de contato com o rebento. sete anos já. comida? só de sentir o cheiro do almoço da pensão o causava engulhos e um náusea. se aliviava num urinol debaixo de sua cama escangalhada e quando cheio se livrava daquele líquido amarelo e mal cheiroso por uma janela que dava para um terreno baldio. Apenas bebia para afastar todos os pensamentos e não é que estava dando certo. sem nenhuma perspectiva à vista. bebia aquele coisa que mais parecia veneno de barata. uma garrafa depois da outra. no penúltimo litro, sentiu o quarto virar e uma dor lancinante no peito. não deu nem tempo de levar a mão ao devido lugar. caiu no chão morto no chão do quarto, com os olhos esbugalhados em uma expressão de horror. o que teria visto em seu último instante? foi retirado dali cinco dias depois quando os outros hóspedes sentiram o putrefato odor de seu cadáver...

Curitiba, 01 de outubro de 2011 , 32 grau celsius- Primavera.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 01/12/2011
Código do texto: T3367033
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