O Círculo

Lucas e Andréia se conheciam desde a maternidade, assim poderiam dizer. Ele nasceu um dia antes que ela, no mesmo hospital da cidade. Foram criados no mesmo bairro e no mesmo conjunto residencial. Ele na Rua 3 e ela na Rua 1. Estudaram juntos, na mesma sala, do maternal até quase todo o ensino médio, quando um problema familiar os afastou dramaticamente.

No final do dia, especialmente nas sextas-feiras, Lucas e Andréia pegavam suas bicicletas e em vez de irem direto para casa, quando voltavam da escola, paravam na praia e ficavam, por muito tempo, sentados nos velhos quiosques abandonados, olhando o mar, conversando e fumando cigarros. Os cigarros eram tirados da carteira de Seu Rômulo, pai de Andréia. Andréia esperava ele ir dormir, para depois retirá-los furtivamente da carteira. Seu Rômulo nunca percebeu a falta dos cigarros. Todas as noites ele entornava uma ou duas garrafas de vinho, usando a desculpa que o vinho fazia bem ao coração, quando ia se deitar encontrava-se bastante grogue para poder lembrar de alguma coisa, muito menos da ausência de alguns cigarros.

Lucas e Andréia tinham acabado de completar 15 anos, e provavelmente seria o último aniversário que passariam juntos. As coisas não andavam nada boas no casamento dos pais de Lucas, e uma separação era iminente. A verdade é que separados eles já estavam há um bom tempo, Andréia mesmo era testemunha, várias vezes ela viu seu Túlio dormindo na sala, quando ela passava na casa de Lucas para eles irem para o treino de judô. O que estava para acontecer era muito pior. Lucas poderia ir morar em outro estado, em Minas Gerais, na casa de sua avó materna, mãe de dona Sandra.

Num final de tarde que chovia bastante e ventava muito, dificultando que os cigarros fossem acesos, Andréia teve a segunda pior notícia de toda sua vida. Para completar o péssimo dia, Lucas estava nos seus dias de mudez, que deixava Andréia extremamente irritada, fazendo com que ela falasse pelos cotovelos, enquanto Lucas não se dava o trabalho nem de olhar para ela, muito menos responder. Ele estava no “dia do silêncio”. Foi esse nome que Andréia deu aos dias que Lucas ficava fora de sintonia. Nestes dias ele só resmungava, não dizia uma palavra sequer, parecia que estava em outro lugar, em outro planeta. De uns tempos pra cá isso estava se repetindo constantemente, tirando Andréia do sério.

_Lucas você está me escutando? Você precisa falar alguma coisa, me diga o que está acontecendo?

Ele nem virava o rosto para olhá-la, simplesmente tragava seu cigarro e contemplava o mar.

Lucas andava muito angustiado. Não sabia como iria contar a Andréia que ele iria embora quando terminasse o ano letivo, e isso seria daqui a um mês. Ele tentava de todas as formas descobrir um modo menos doloroso de contar-lhe a maldita notícia. No entanto sua imaginação não encontrava nada que pudesse aliviar a dor que sentiriam quando a má nova fosse anunciada. Além do mais, Lucas andava bem confuso sobre seus sentimentos por Andréia. Ela sempre foi sua melhor amiga, ela sabia absolutamente tudo sobre ele, e vice-versa, porém, ele nunca a tinha visto com outros olhos, ela sempre foi uma amiga querida, praticamente uma irmã. Entretanto, nesses últimos meses, quando soube que iria se mudar, uma aflição o corroia por não conseguir se imaginar sem Andréia ao seu lado, somado a isso, começou a perceber que ficar muito próximo dela começava a pertubá-lo de uma forma que nunca tinha acontecido, também notou que sentia um friozinho na barriga quando a encontrava sem estar esperando e passou a ficar bastante zangado quando ela falava de algum outro menino para ele. Esse sentimento novo, fez com que ele começasse a colocar em xeque seu real sentimento por Andréia. Era só uma fraternal amizade ou algo mais? Ele ainda não sabia responder. Por outro lado Andréia não tinha nenhuma dúvida, descobriu aos 9 anos de idade que Lucas era o homem da sua vida, quando ele brigou com um garoto mais velho e mais forte que ele para defendê-la. Deste dia em diante Lucas passou a ser o seu herói e amor eterno. Depois que ficou um pouco mais velha e percebeu que não havia reciprocidade no que sentia, que Lucas só a via como uma irmã, tentou se entusiasmar por outros meninos, chegando a namorar alguns. Contudo, nenhum garoto, por mais bonito e inteligente que fosse, conseguiu sequer fazer sombra ao que ela sentia por Lucas. Nos últimos meses começou a ter sua esperança renovada, pois Lucas começou a manifestar um ciúme que até então era improvável, e ela também não deixou de perceber certo nervosismo e inquietação quando os dois estavam um pouco mais próximos, principalmente durante os treinos de judô. De um tempo pra cá ele estava se recusando a treinar com ela alegando que estava precisando lutar com alguém mais pesado. Ela sabia que não era isso, ela sentia que não era. Ela sentiu o desejo dele no último treino que fizeram juntos.

Depois de muito tempo calado e resmungando sozinho, como se estivesse falando com alguém invisível, Lucas se voltou para Andréia e contou, de supetão, a péssima notícia.

Todas as esperanças de Andréia despencaram desfiladeiro abaixo quando ela soube que Lucas iria se mudar para Belo Horizonte. Ela ficou sem conseguir dormir durante muitos dias, tentando arrancar de seu peito aquela sensação perturbadora. Tentou de todas as maneiras se livrar do amor que possuía por Lucas, foi inútil. No dia da despedida Lucas foi procurá-la e não a encontrou em casa. Ele sabia onde achá-la. Ela estava nos velhos quiosques abandonados da praia, fumando os cigarros roubados da carteira de seu Rômulo. Seu rosto estava inchado e seus olhos vermelhos. Ela levantou-se e o abraçou. Ficaram muito tempo assim. Lucas ameaçou beijá-la e então desistiu. Ela nunca o perdoou por essa atitude, ou, por essa falta de atitude. Despediram-se com juras de nunca perderem o contato e de se visitarem durante as férias. Nada disso aconteceu. Depois da despedida nunca mais se viram. Um ano depois da viajem de Lucas, nunca mais se falaram.

40 anos depois.

Uma elegante senhora sai de uma clínica médica mostrando um contente sorriso e segurando um prato com bolo e doces da comemoração surpresa que fizeram para ela pelo seu aniversário de 55 anos. A elegante senhora é Andréia. Ela estava muito apressada pois ainda hoje viajaria para Minas Gerais, para cidade de Alfenas onde seu filho se formaria em Odontologia. Ela estava bastante orgulhosa. Ela passou por muitas dificuldades depois que ficou viúva. Seu marido morreu quando o menino tinha 6 anos, e ela ralou muito tempo sozinha para conciliar a faculdade de medicina e a educação de seu Filho. Deu tudo certo. Ela obteve êxito nas duas empreitadas. Conseguiu se formar com louvor, mesmo sendo depois do esperado, e hoje é uma bem sucedida dermatologista, e Lucas se tornou um ótimo filho e um homem de caráter.

Quase seis horas depois da comemoração na clínica, Andréia desembarca no aeroporto municipal de Alfenas. Ela está ansiosa para rever Lucas. Tinha quase dois anos que não se viam, e a vontade de dar um forte e longo abraço e cobri-lo de beijos e mimos era imensa. Avistou seu filho logo que saiu da sala do desembarque. Correu em direção a ele. Só depois de quase dez minutos de chamegos, choros e risos foi que percebeu que Lucas estava acompanhado por uma garota. Lucas a apresentou.

_Mãe essa aqui é a Ana Andréia Barbosa Lizzano, mais conhecida como Aninha.

Quando Andréia ouviu aquele sobrenome tomou um grande susto. Uma avalanche de recordações desmoronou por sua cabeça. Olhou atentamente para a moça a sua frente, observando minuciosamente seu rosto. Ficou emudecida. Emocionada. Sua mão que segurava a da garota começou a tremer. A garota começou a ficar nervosa e olhava para Lucas com uma expressão assustada. Lucas então perguntou:

_Mãe você está bem? O que está acontecendo mãe?

Ela não ouviu. Ele insistiu.

_Mãe você tá passando mal? E alisou o ombro dela de uma forma carinhosa.

Andréia então saiu do transe que se encontrava e perguntou, ainda olhando fixamente para Aninha.

_Minha filha qual é o nome de seu Pai?

_Lucas Hermínio Lizzano Filho.

Um rio de Lágrimas inundou o rosto de Andréia.

Os dois não entenderam o motivo daquela reação, e ficaram extremamente preocupados. Quando Andréia se refez do choque contou toda a estória. Estória que nem seu filho conhecia. Ela contou sobre seu amigo Lucas Lizzano. Contou que eles nasceram no mesmo ano e mês e que por um capricho dos deuses não nasceram no mesmo dia. Contou que estudaram na mesma sala por muitos anos. Falou das tardes nos quiosques da praia fumando cigarros. Dos treinos de judô. De como eles eram ligados. Falou do modo triste que suas vidas foram separadas e que nunca mais tinham se visto. Isso fazia 40 anos. Falou que quando ouviu o sobrenome de Aninha e olhou com atenção para ela teve a certeza que ela era filha de seu querido amigo. “Você é muito parecida com seu pai” Andréia disse. Aninha respondeu que sua avó sempre dizia isso. Falou que o nome que deu a seu Filho foi em homenagem a ele, a Lucas Lizzano, seu inseparável companheiro de infância e adolescência. Também disse que ficou muito lisonjeada por ver seu nome na filha dele. Lucas e Aninha se olharam e ficaram pasmos com tudo aquilo que tinham ouvido. Um longo silêncio se seguiu.

Aquilo tudo pareceu bastante insólito para Andréia. Nunca poderia imaginar seu filho ser amigo da filha do seu grande amigo e primeiro amor, que ela não via nem tinha notícias há quase meio século, mas que sempre esteve vivo em suas lembranças. Foi muito emocionante para ela.

Andréia quebrou o silêncio e perguntou a seu filho se ele sabia que o nome do pai de Aninha também era Lucas.. Ele respondeu que até aquele momento sabia muito pouco sobre o pai de Aninha, ela quase não falava dele, e quando se referia ao pai só o chamava de seu Lizzano. Olhou para Aninha e perguntou:

_Você alguma vez me disse que o nome de seu Pai era Lucas?

_Com certeza eu falei, mas confesso que não penso muito nisso, não vejo meu pai há 20 anos. Quase não tenho lembrança dele. Até eu esqueço que o nome dele é Lucas.

_ Mamãe, Aninha só fala da mãe dela, quase não fala do pai. E como sempre a chamei de Aninha, nunca dei muita importância ao fato de o segundo nome dela ser Andréia, sempre pensei que fosse uma simples e feliz coincidência, e sinceramente não lembrava que o nome do pai dela era o mesmo que o meu. E mesmo que eu lembrasse, nunca poderia desconfiar de uma estória dessas. Isso parece coisa de novela.

Quando terminou de dizer isso fez uma expressão grave, olhou para Aninha, ela pareceu adivinhar o que ele estava pensando e também franziu o cenho, ele então passou seu olhar para a mãe, pigarreou e disse:

_Mãe, tem uma coisa que a senhora ainda não sabe, eu ia dizer com mais calma quando chegássemos em casa, porém, diante do acontecido é melhor eu dizer agora.

_O que é meu filho? Falou Andréia parecendo refeita do susto.

_Eu e Aninha estamos morando juntos há oito meses e pretendemos nos casar no final deste ano. E tem outra coisa, Aninha está grávida.

Outro rio de lágrimas correu dos olhos de Andréia.

Já na casa que seu filho dividia com Aninha, Andréia refletia sobre o círculo giratório que a vida se revelou para ela. Ficou nessa melancólica viagem por muito tempo, até criar coragem e perguntar a Aninha onde estava Lucas Lizzano. Foi nessa hora que Andréia recebeu a pior notícia de sua vida.

Aninha lhe contou que pouco lembrava de seu pai. Ela não o via desde que ela tinha 4 anos. Porém, sabia muito bem onde ele estava.

Aos 31 anos, Lucas Lizzano foi diagnosticado com uma rara doença mental esquizofrênica e desde então vive numa casa de repouso para doentes mentais na cidade de Belo horizonte. A medicação usada faz com que ele fique mais tranquilo, porém, nunca conseguiu controlar por completo suas crises, o que tornou impossível o convívio social. Aninha falou também que sua mãe fez tudo o que podia para que ele não fosse internado. Mas era uma situação muito triste, ele vivia em outro mundo, e num rompante de lucidez o próprio Lucas pediu para ser internado. Aninha disse também que o visitou poucas vezes durante o primeiro ano de internamento. Como ele nunca a reconhecia, e estava sempre ensimesmado, sua mãe decidiu não levá-la mais. E assim ela viveu todos esses anos, órfã de um pai vivo. Seu pai vivia em outro mundo, no seu próprio mundo. E ela também fez o seu mundo, um mundo sem pai, acostumou-se a viver assim. É feliz e pouco lembra dele. Aninha também falou que sua mãe ainda ia visitá-lo com certa frequencia.

Andréia pediu o endereço da casa de repouso. Uma semana depois da festa de formatura de seu Filho ela partiu para Belo Horizonte e foi visitar seu velho amigo Lucas. Chegando lá constatou que o lugar era bem administrado, muito limpo e bastante organizado. A enfermeira que estava de plantão a acompanhou até um frondoso jardim, cheio de grandes árvores. Ela apontou na direção de uma mangueira e mostrou um homem sentado num banco de madeira sob a sombra da árvore. Andréia aproximou-se e reconheceu a face de seu inestimável amigo. Incrivelmente ele não tinha mudado muito. Apresentava algumas rugas no canto do olho, suas têmporas estavam embranquecidas, mas seu físico continuava muito bom, seu rosto ainda era muito bonito. Andréia passou a mão nos fartos cabelos dele e falou:

_Lucas, lembra de mim, sou eu, Andréia.

Ele nada disse, continuou contemplando o horizonte. Andréia sentou-se ao seu lado.

Um tempo depois ele virou-se, e olhou para a mulher ao seu lado muito atentamente e disse:

_Dona Normélia onde está a Andréia?

_Lucas, sou eu, a Andréia, não me reconhece, Normélia era a minha mãe.

Ele não ouviu e continuou a falar

_Diga a ela que eu não vou me mudar, vou dar um jeito, vou ficar para sempre aqui com ela. A senhora diz isso a ela pra mim?

Disse isso e voltou a mirar a paisagem. Andréia não conseguiu controlar seu choro. Abraçou o amigo fortemente e chorou por muito tempo. Depois de aliviada, ela abriu a bolsa, tirou uma carteira de cigarros, olhou para os lados procurando alguém que pudesse repreendê-la e como não achou, acendeu um e ofereceu outro a Lucas, ele aceitou. E os dois ficaram ali, lado a lado, como nos velhos tempos, fumando e vendo o por do sol.

jacosta
Enviado por jacosta em 15/12/2011
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