Punhos, Pistolas e Campeôes

Dois homens conversam acaloradamente ao lado de uma antiga e popular panificadora do centro da cidade, bem em frente ao calçadão onde funciona o comércio de ambulantes.

_Manoel, eu não posso deixar esses caras tomarem conta do meu local, porra! Estou neste ponto a mais de dez anos, esses fuleiros chegaram agora, há duas semanas, e querem sentar na janela. Assim não dá portuga. Esses filhos de uma puta não podem fazer isso!

_Muito cuidado gajo. Se me permite um pequeno alvitre, fica longe dessa gente. Essa estória de DVDs piratas tá me parecendo conversa pra boi dormir, o pá.

_Tá sabendo de alguma coisa portuga?

_Não, não tô sabendo de nada, é só mesmo pressentimento, tu bem sabes que sou macaco velho, e esse negócio está me cheirando mal. È coisa fedida, o pá, tenho certeza. Se eu fosse tu, deixava pra lá.

_Tá me desconhecendo irmão? Que isso portuga? Cê acha que eu, o Tatu, vou deixar esses caras esculhambarem nosso lugar? Ralei pra caramba, e agora que tá tudo calmo esses caras aparecem para atrapalhar. E tem outra coisa, eles tinham que vir falar comigo primeiro, com o Tatuzinho aqui, antes de arrumar a muamba deles ali, tá ligado? Tu tá muito enganado se acha que eu vou deixar isso passar barato. Não vou mesmo. Tu esqueceu do meu poderoso gancho de esquerda? Porra, eu vou quebrar de pancada esses fulanos, ah se vou! Tá me tirando? Qual é mano? Ah, sou eu mano, o Tatu, que isso, vou arrebentar.

Manoel balançou a cabeça e sorriu. Ele conhecia muito bem a cabeça dura e a arrogância de seu amigo. Resolveu então mudar de assunto. Contudo, continuava com a pulga atrás da orelha -como ele costumava falar- com relação aos tais vendedores de DVDs.

_Tu que sabe Tatu. Vamos mudar de assunto, beleza?

_Pô, beleza.

A conversa tomou rumos futebolísticos e se estendeu por mais meia hora, quando eles se despediram. Seu Manoel voltou para o balcão de seu estabelecimento enquanto Tatu seguiu para casa.

Tatu, que nasceu João Gilberto, assim como o cantor, é um homem fisicamente atarracado, de estatura mediana, moreno claro, com braços e pernas muito fortes, pescoço grosso e curto, cabelos raspados e bigodinho de pilantra. É dono de uma barraca no centro da cidade que vende todos os tipos de tranqueiras chinesas. Dessa barraca ele consegue uma boa renda para o sustento de sua família. Entretanto, o grosso do seu dinheiro vem de lutas de vale tudo clandestinas. As lutas acontecem em galpões abandonados no distrito industrial da cidade. São organizadas por um grupo de chineses, que controlam as apostas com mãos de ferro. A pouco mais de um ano os combates quase acabaram em virtude de uma interferência de alguns coreanos que tentaram tomar a organização do evento na força. Chegaram sem aviso na hora do pagamento das apostas e tocaram o terror. Para sorte dos chineses, Tatu estava chegando na hora e conseguiu desarmar dois dos coreanos que ameaçavam seus amigos. Quebrou alguns braços e narizes, botando pra correr a coreanada. Depois disso, o marrento Tatu ficou ainda mais insuportável. Ele caiu de vez na graça dos chineses. E ele que sempre foi tratado muito bem, cheio de regalias e mimos, era agora praticamente um rei para a chinesada mafiosa.

Tatu tinha verdadeira obsessão pelo filme clube da luta e é fã ardoroso do Anderson Silva. Seu maior sonho é um dia participar de lutas oficiais de vale tudo. Sonho praticamente impossível de ser realizado, já que Tatu já passa dos 30 anos, embora esteja no auge de sua forma física. Chegou a treinar numa academia de um lutador profissional, mas não foi muito longe, como não tinha patrocínio para se manter, teve que abandonar os treinos e voltar a vender em sua barraca. Isso aconteceu há mais de dez anos. Agora ele treina por conta própria e se realiza nas lutas clandestinas. Ele é excelente no boxe e muito bom no muay thai. O seu melhor e mais poderoso golpe é seu gancho de esquerda. O golpe parece uma marretada, quem já sentiu a mão pesada de Tatu sabe bem disso. Defende-se muito bem no chão, apesar de estar longe de ser um especialista no jiu-jítsu, mas dá pro gasto. Também possui um poderoso chute de direita. Ele é destro com o pé e sinistro com a mão. Sabe apanhar como ninguém, aguenta muita porrada.

Tatu andava oito quilômetros todos os dias. Quatro na ida pro trabalho e quatro na volta. Nesse dia ele ia ruminando sua indignação com a intrusão dos dois vendedores de DVDs piratas em sua área. Ele lembrava como teve que se virar de tudo que é jeito pra conseguir se estabelecer naquele ponto. Apanhou e bateu em fiscais várias vezes, e teve que sair correndo outras tantas. “E agora que está tudo calmo, o rapa comendo pianinho na minha mão, chegam esses sacanas pra avacalhar com tudo”. “E se o portuga estiver com razão e os caras estiverem envolvidos em algum negócio barra-pesada, como drogas ou armas, aí é que vai fuder tudo mesmo”. Tatu costumava falar sozinho enquanto caminhava, cacoete que herdara de seu pai. Também xingava, ria, esquivava, dava socos no ar, e repetia várias vezes a mesma frase, “aí vai fuder”, “aí vai fuder”. Ele andou por muito tempo assim, falando sozinho, até que chegou em casa. Nessa noite Tatu não conseguiu dormir direito.

No dia seguinte pela manhã, quando estava armando sua Tenda Chinesa e resmungando a noite mal dormida que passou, viu seus desafetos chegando. Aproximou-se, pouco disfarçando sua ira, e falou:

_Aí, presta atenção aqui. Vocês não podem vender esses DVDs aqui não. Essa área já tem todas as barracas que pode ter. Então, eu, como representante dos vendedores daqui, peço que vocês procurem outro lugar pra vender suas bugigangas. Vão lá pra praça, lá pra outra esquina, lá pra casa do caralho! Só não vão ficar aqui, aqui não! Escutaram!

Os dois homens se olharam, olharam para o Tatu, deram uma boa gargalhada e continuaram a arrumação. Foi tudo que Tatu esperava. Foi o motivo que ele queria pra perder a paciência e partir pra cima dos dois. O mais baixinho quando viu Tatu vindo com cara de poucos amigos, pegou uma barra de ferro que ajudava a segurar a tenda e tentou acertar a cabeça de Tatu. Tatu se esquivou e contra-atacou com seu gancho de esquerda, o golpe atingiu o queijo do vendedor fazendo um assombroso estalo de osso quebrando. O rapaz caiu desacordado em cima dos DVDs que pretendia vender. A situação fez com que os transeuntes, camelôs e curiosos que estavam por ali parassem para ver o que estava acontecendo. Logo uma pequena aglomeração cercava os brigões. O segundo rapaz era mais alto do que o primeiro, e também mais forte. Ele olhou para seu amigo caído no chão, tirou a camisa e começou a gingar capoeira. Tatu nunca tinha lutado contra capoeiristas, até por que não acreditava que capoeira fosse luta. Agora foi a vez dele gargalhar e partir em direção ao adversário, que continuava dançando. Tatu foi se aproximando aos poucos, tentando diminuir a distância com esquivas, chutes e jebs. Quando chegou um pouco mais perto, o vendedor de DVDs esticou sua perna direita e acertou, com certa violência, o peito de Tatu com a sola do pé, a chamada benção, Tatu recuou bastante irritado e voltou com tudo para cima do capoeirista. Foi um grande erro. O capoeirista girou, apoiando as mãos no chão e rodou sua perna atingindo, desta vez com muita violência, o calcanhar no rosto de Tatu, que caiu no chão, com a boca ensanguentada. O chute é conhecido como meia-lua de compasso. Os espectadores foram ao delírio com o golpe. Tatu era bastante conhecido na região, mas, também era muito antipatizado. A torcida estava dividida. Em meio aos gritos de apoio a Tatu ouviam-se nitidamente pessoas torcendo pelo capoeirista. O vendedor de DVDs voltou pra sua ginga. Tatu levantou-se desnorteado e tentou acertar um chute giratório no rosto do adversário, o golpe passou longe, então, o capoeirista, revidou com outro golpe giratório, chamado de martelo, e acertou o rosto de Tatu derrubando-o de novo. Dessa vez parecia que ele não levantaria mais, o golpe foi preciso e muito potente. Entretanto, Tatu era conhecido pelo seu poder de absorver bem os golpes, e para espanto de todos, inclusive de seu opositor, ele levantou, ficou em guarda e chamou o capoeirista para luta. O capoeirista estava mais confiante e começou a dar cambalhotas na frente de Tatu. Girava para um lado e para outro, depois gingava. Tatu, dessa vez, preferiu estudar melhor seu oponente, ao invés de atacar. Sentiu na cara que capoeira era luta sim, e passou a respeitar o lutador. Resolveu escolher a melhor hora para agir. Também precisava se recuperar um pouco mais dos golpes que levou, e enquanto o vendedor de DVDs piratas dava cambalhotas, ele só seguia com os olhos e tomava fôlego. Ficaram alguns minutos assim, quando o capoeirista resolveu acabar logo com a luta e girou a perna dando uma meia lua em pé, Tatu esquivou, o capoeirista rodou outra meia lua de compasso, apoiando as duas mãos no chão, Tatu se abaixou e passou sua perna nas mãos do capoeirista que estavam apoiadas no chão, fazendo que ele perdesse o equilíbrio. Tatu percebendo o desequilíbrio se levantou e acertou um direto de direita no peito do capoeirista, que caiu sentado. Tatu já tinha ganhado terreno e estava bem perto do outro lutador e meteu uma joelhada de perna direita no nariz do vendedor. A joelhada acertou em cheio seu adversário, que caiu deitado e num ato de reflexo levantou-se rapidamente, ensanguentado e sem saber onde estava. Tatu sabia muito bem onde estava e o que iria fazer. Partiu pra cima com jebs e diretos que foram arrebentando a cara do outro. Foi uma sequência inacreditável de oito socos, parecia uma metralhadora, terminando com seu conhecido e devastador gancho de esquerda, finalizando o adversário e a luta. A pequena multidão que assistia ficou em polvorosa, gritando “Tatuuu, Tatuuu, Tatuuu...”. Tatu foi se afastando calmamente, com os braços levantados na altura do rosto, mostrando seus punhos cerrados para a enlouquecida platéia. Ele estava em êxtase, nunca tinha lutado pra uma platéia tão empolgada. Ele estava se imaginando dentro do octógono ganhando o cinturão de campeão mundial. Foi tirado do seu transe por um homem de terno e gravata que parou em sua frente e lhe disse:

_Gostei muito da sua luta Tatu, quero ver você lutando como profissional. Toma aqui meu cartão e me encontre hoje a noite nesse endereço pra gente trocar uma ideia.

Tatu olhou bem pro rosto daquele homem e não acreditou no que viu. Ficou quase um minuto paralisado olhando para a figura de terno e gravata.

O homem percebendo a situação, perguntou de novo:

_Então Tatu, vai me encontrar hoje à noite?

Com a voz embargada, Tatu finalmente falou:

_Eu sabia que um dia minha chance ia chegar, é claro que eu vou...

Antes que conseguisse terminar a frase, três tiros foram escutados. O corpo de Tatu tombou aos pés do homem de terno, sua mão ainda segurava o cartão. De sua cabeça jorrava sangue, que escorreu manchando a calçada do centro da cidade. Os dois desafetos do lutador foram vistos correndo em direção a um carro parado na esquina da rua, um deles segurava uma pistola. Dentro do carro, como motorista, estava um homem de traços orientais, um coreano. O carro saiu em disparada. Nunca mais foram vistos. Tatu morreu ali mesmo, na calçada que vendia suas tranqueiras. Morreu sentindo-se um verdadeiro campeão.

jacosta
Enviado por jacosta em 02/01/2012
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