Uma Pequena Cena Doméstica
-Já faz uma semana que você está aqui no apê brincando de casinha!
-E?
-E eu preciso escrever! Vou estourar o prazo da editora desse jeito e minha agente vai enfiar o dedo no meu rabo se tivermos que pagar multa da gráfica, porra!
- Sento diante do seu computador e escreva, oras!
- Você acha que é fácil?
-E toda essa birita que você bebe?
-Ajuda.
-Como ajuda? Você bebe e fica pelos cantos declamando esses versinhos sei lá de quem!
-Baudelaire e Rimbaud para você são versinhos? Tá viajando. Fumou a erva do gato ou acho que exagerou no vinho ontem à noite.
-O que isso tem haver com o que você estava falando, hein?
-Tá. Tá bom. O que queria dizer é você fica arrastando sandálias, abrindo janelas, batendo portas, andando bem à vontade por aí e me tira a concentração. Quantas vezes que eu tenho que lhe dizer que eu preciso transpirar para depois me inspirar? O romance tá quase no fim se eu não sei se mato o personagem principal, a mocinha ou invento um holocausto nuclear, caralho. Eu cumpro prazos, sacou a minha mensagem? Levei quarenta e cinco anos para largar tudo e viver com a minha arte.
-É mesmo, seu velho estúpido? E eu? Eu tenho vinte e cinco anos e muita vida pela frente! Acabei de me formar! Me dá um tempo! Quero férias de responsabilidades. E tem outra, senhor escritor, você fica duas ou três semanas sem me ligar, fingindo que eu nem existo e quando quer trepar me liga correndo. Tá pensando que eu sou depósito da sua porra?
-Babe, tente entender. Se eu não te telefono é porque estou assoberbado de ideias e preciso colocar no papel. Preciso escrever os artigos mais desinteressante que se possa conceber para essas revistinhas que não valem nem para aparar a merda do gato e esses jornalões provincianos que ainda acham que Curitiba é capital de alguma coisa. Entra alguma grana. Preciso de dinheiro. Para pagar o ônibus, para comprar meus cigarros, minha bebida, pegar a conexão da internet, alimentar o bichano e me alimentar, pagar o condomínio e a prestação daquele vestido cheio de fricotes que eu comprei pra você. Babe, pelamordedeus, qualquer um deles que estiver mais à mão! Javé, Krishna, Brahma, Zeus, Odin, qualquer um! Tente entender que eu fiquei a vida inteira correndo atrás disso agora que consegui não posso perder a concentração e foco!
-Aí você começa a falar difícil e eu perco o fio da meada. Esse é seu problema. Você sempre ter que parecer culto e inteligente?
-Não.
-Quer que eu vá embora pra você colocar essas vagabundas dessas tietes aqui pra dentro e ficar de sacanagem até ralar, né?.
-(...) suspiro.
-Tá. Então faz o seguinte. Vai dar uma banda. Pega meu cartão do banco aqui. Vai comprar um negócio que te faça feliz. Eu pago. Na boa. Coloco como despesa de pesquisa para o livro. Deixe-me a sós para escrever mais um ou dois capítulos e depois volta. Vai ao shopping, vai tomar um lanche ou um chope. Deixa-me escrever que talvez eu consiga dar fim a essa história? Volta só depois de escurecer, tá bom?
O homem entrega seu cartão de crédito para a moça. Ela começa a vestir-se. Pega o cartão e guarda em sua bolsa. Já elegantemente vestida ela calça os sapatos. Vem até o homem e estala um delicioso beijo em sua boca:
-Você é um doce! Um amor!
E se vai rumo às delícias do consumismo desenfreado.
Curitiba, 20 de janeiro de 2011, 28 graus célsius - Verão.