Misture-se a Mim

“Tu ri como teu avô, menina”.

Me acostumei a ouvir isso desde que meus caninos nasceram, após o suicídio dos dentes de leite. Junto com os meus caninos grandalhões e pontiagudos, nasceu também a curiosidade sobre aquele avô que não conheci – separou-se de minha avó antes de meu nascimento.

Ouvi falar pouco sobre este homem chamado José. Certa noite, em criança, percebi que minha avó conversava com meus pais no quarto dela. Eles sussurravam. E o sussurro é o tempero dos ouvidos; então, com a sagacidade que só as crianças têm, esgueirei-me para perto da porta entreaberta de minha avó, e ouvi o papo.

- José berrava tanto aquele dia, que saiam raios de sua boca.

Ao ouvir isso de minha avó, entendi que teria dificuldades para dormir. Segurei o gemido de horror na minha garganta, até me afastar o bastante da porta de minha avó. Depois, deitada na minha cama, ao lado de minha irmã, contei o que ouvi para ela. Ambas ficamos sem sono, boiando no terror da lembrança. Lembro-me que ficamos olhando o teto do quarto na escuridão. O abajur estava apagado, para que ninguém desconfiasse que aquela informação que eu havia criminosamente coletado iluminava nosso pesadelo.

Anos depois, no comecinho da adolescência, comecei a ter aulas com uma professora que já havia trabalhado para meu avô. Com a felicidade dos desavisados, comentou que eu tinha o sorriso muito parecido com o de “seu José”. Me perguntei se eu também seria capaz de jogar raios pela boca.

Procurei alucinadamente fotos do homem nos armários empoeirados de minha avó. Encontrei milhões de fotos rasgadas pela metade. Em todas, aparecia apenas a minha avó, mais jovem. Entendi que, ao lado dela, provavelmente estava o meu avô. Ela teve o ódio tranqüilo e cirúrgico de rasgar todas as fotos em que seu ex-marido aparecia.

Em algumas fotos, era possível ver que havia sobrado um braço masculino, uma mão com aliança, um pedaço de terno e gravata, um cálice de vinho tinto bebido pela metade. Mas seu rosto havia sido triturado, mutilado com o bisturi da mágoa desta mulher abandonada.

Quando eu tinha 14 anos, ficamos sabendo que o meu avô havia morrido. E tinha uma homenagem para ele, no jornal impresso. Havia uma foto dele. Sim, lá estava o meu sorriso. Os caninos malvados em seu rosto bondoso. Consegui examinar bem a foto, antes que a página do jornal fosse estraçalhada pela ira – já fossilizada – de minha avó.

Ainda hoje, quando fecho os olhos, consigo ver detalhes daquela foto em preto e branco. O sorriso com uma vasta variação de tons de cinza. O sorriso que veio como um presente nos meus genes. Mas eu jamais conseguiria reproduzir o mesmo sorriso, se não tivesse roubado também as células da inocência e da bondade de seu José. E dos caninos avantajados, é claro.

A gente nunca é apenas uma pessoa. Todos somos a mistura da bondade, dos dentes, das covinhas, das maçãs do rosto e das emoções de nossos ancestrais. E todos nós carregamos também uma cestinha em que colocamos outras qualidades e defeitos que encontramos e desenvolvemos no caminho.

O tempo que passou apenas me confirmou que eu não deveria usar aparelho para apagar essa memória. Eu jamais imaginei que revelaria, em meus momentos de felicidade infantil, um homem que mal conheci. Mas, de qualquer jeito, ele vive dentro de mim e viverá a partir daqueles que um dia vierem de mim.

Se tudo der certo, colocarei pessoas no mundo que também me recordarão a partir desses caninos, desse cabelo amarelo e liso, da floresta verde dos meus olhos ou até da curiosidade, que me faz rastejar pelo chão feito lagartixa, só para ouvir conversas que não me convém.

Até agora, não precisei soltar os raios que vivem em minha boca.

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