Primeira Vingança

Quando a gente é criança acredita em muitas coisas, como se isso fosse requisito básico para passar por essa fase da vida. Mas há algumas coisas que acontecem ao nosso redor que nunca vamos encontrar explicações. Por isso quero compartilhar essa história, tão verdadeira como todas as outras histórias de criança.

Naquele dia saímos em grupo em busca de aventuras como todos os dias. O combinado daquela manhã de férias escolares era de que fossemos invadir o sítio do outro lado do bairro, depois da BR, e como uma ordem coletiva sabíamos que não podíamos voltar de mãos vazias. Partimos, fazendo de cada passo uma acrobacia, cada frase uma resenha, e de cada risada o estopim para ininterruptas gargalhadas.

O plano de invadir o sítio foi um sucesso. Não havia ninguém por perto e muito menos no local. Subimos no alto pé de manga e ficamos lá por um tempo bom, quando descemos fizemos uma vasculha geral, levando tudo quanto podíamos comer antes de chegar em nossas casas, afinal não queríamos enfrentar um pesado interrogatório de nossas mães, justificando a origem das frutas, então o melhor mesmo era devorá-las no caminho.

O retorno foi mais agitado do que a ida. Éramos um grupo de oito meninos, todos de idade variando entre nove e doze anos, nessa época eu tinha onze e era uns dos mais zuados do grupo, mas a minha glória estava marcada para aquele dia.

No trajeto de volta passamos em frente uma oficina, com toda a nossa euforia despertamos um dos cachorros que tomavam conta da mecânica. Era um daqueles cachorros pretos, violentos, sanguinários e mortais para qualquer criança de nossa idade, e para piorar, ele era quase do nosso tamanho e ainda estava solto.

Ainda ouço os latidos daquele cão miserável estalando em meus ouvidos, lembro de quando olhamos pra trás e ele estava quase pulando em cima de um dos menores de nossa turma, que por sorte não caiu, teria sido o fim. Notamos as pernas dele tremendo quando o cachorro assassino se aproximou e gritamos apavorados chamando a atenção do animal feroz a fim de distraí-lo do alvo.

Um dos mecânicos apareceu no portão da oficina e chamou o cachorro, mas o tom dele era de despreocupação, como se aquela fosse uma situação corriqueira e sem importância. Ele não percebeu o terror em nossos olhos, ele foi avesso à nossa agonia, ao nosso pânico, e pela sua naturalidade o bicho não retrocedeu e avançou ainda mais pra cima de nós.

Olhamos a nossa volta e, como se pensando em conjunto, paramos em forma de um semicírculo no meio da rua, encaramos uns aos outros e instintivamente nos armamos com as maiores pedras que encontramos pelo chão. O cachorro, que naquele tempo nunca identificaria como um rotvalle, freou bem em nossa frente ainda rosnando e com a boca cheia de dentes enormes e espumas escorrendo por todos os lados. O funcionário gritou outra vez com a mesma indiferença. Não recuamos. Esperamos ele dar mais um passo em nossa direção e obedecemos à ordem de um dos mais velhos da turma.

- Atirem!

Laçamos as pesadas pedras com toda força que nossos pequeninos braços poderiam suportar, não estávamos imbuídos do ódio que os hebreus tinham ao apedrejar os pecadores, mas sim, tomados pelo medo, pela certeza de que não adiantaria se corrêssemos, de que não faria efeito esperar pela repreensão inútil daquele adulto sem noção. Acho que nem de nós errou uma pedra se quer e todos contemplaram, depois de ouvir o som seco das pedradas atingindo a besta e o seu gemido alto e penetrante, o cão se estirando no chão e deixando escapulir um filete de sangue da boca, ainda espumada, que logo fora se tornando uma pequena poça em volta do animal.

O mecânico nos arrostou incrédulo. Dava pra ver a fúria naqueles olhos grandes e com manchas pretas do serviço ao redor. Ainda estáticos, só retomamos os movimentos quando ouvimos o cara lá parado gritando para seus companheiros:

- Os filas da égua – assim mesmo, como se fossemos todos irmãos – mataram o cachorro!

De súbito sabíamos que ficar ali parados não era mais a opção. Era hora de voltarmos à fuga, mas antes de reagirmos, vimos os outros funcionários apontarem no portão, cada um com uma ferramenta pesada ou uma barra de ferro nas mãos, e uma cara mais nervosa que a outra. Nenhum de nós, no entanto, não entendeu quando, antes da evasão, o mesmo que dera a ordem para o massacre do rotvalle enfrentasse a tropa dos adultos com o grito:

- Pode vim, seus otários!

O nosso bando correu desesperado enquanto o outro bando iniciava a perseguição. Tínhamos a vantagem de mais de um quarteirão sobre eles, além do conhecimento de atalhos que só crianças espertas, como nós, poderiam descobrir. Corremos numa velocidade que nunca mais atingiríamos em nossas vidas, num pavor que nunca mais sentiríamos também. Mesmo com a variação de idade e tamanho, o grupo se manteve unido e não deixou ninguém pra trás, a certeza que compartilhávamos era única: se um de nós fosse capturado, não voltaria mais, ia morrer nas mãos daqueles brutamontes. Por isso corremos e nos enviamos em becos, pulamos muros, avançamos cercas e invadimos, todos juntos, a casa de um dos nossos amigos.

- Mãe, a gente vai brincar no quarto!

- Oi tia!

- Licença dona Rute.

- Espere por mim, os meninos. Tudo bem, dona Rute.

- Oi, desculpa aqui, onde é seu quarto, cara?

- Bora logo, véi, entra aí!

E assim por diante entramos todos para o quarto apertado da primeira casa abrigo que encontramos. Era de se esperar que a mãe do nosso companheiro estranhasse a invasão, difícil seria explicá-la o motivo, ainda mais com o comportamento nada discreto de todos nós, porém quando ela nos interpelou um dos moleques mais inteligentes do grupo respondeu sabiamente:

- Né nada não, dona Rita, é que ta uma correria enorme aí fora, que decidimos brincar aqui dentro.

Todos confirmamos e nos entulhamos dentro do cubículo. Ficamos lá escondidos por horas a fio, e como o quarto era próximo à parede da rua, dava pra ouvirmos a barulheira que se tornara o bairro. Agora não eram mais apenas os mecânicos que estavam à procura da turba bardeneira, muitas pessoas já estavam mobilizadas a limparem o bairro dos marginalzinhos. Ouvíamos assustados os gritos de “pega eles”, “procura ali”, “vai por lá”. O ápice do nosso desespero foi quando ouvirmos a sirene da polícia zunir dentro dos nossos ouvidos. Era como se estivéssemos ainda na rua correndo e polícia fechando o nosso cerco.

Nunca ficamos tanto tempo em silêncio como naquele dia. A porta da frente se abriu e nossos corações dispararam. Era o pai do nosso amigo, dono da casa.

- Amor cadê os meninos? Tá uma confusão dos diabos lá fora. Acho que um bando de marginais assaltaram a oficina aqui do bairro. Dizem que teve até morte. A polícia ta aí, atrás desses vagabundos.

- os meninos estão no quarto, amor. Eles também ficaram assustados.

Ouvimos aquela noticia estupefatos. Quando olhei para cada um dos meninos e vi tanto medo enrolado naquele silêncio desconfortante e desconhecido entre nós, não pude deixar de pensar. Era realmente a hora de fazer alguma coisa. Se íamos ser descobertos, se íamos ter que enfrentar a polícia e, pior ainda, os nossos pais, então eu não poderia permanecer calado diante daquela situação. Tinha a certeza do que eu precisava fazer, poderia ser a decisão mais difícil a ser tomada, mas não poderia deixar passar aquela oportunidade.

Levantei-me e fui até o meio do quarto, ninguém entendeu o que eu estava fazendo, mesmo assim resolvi continuar o que eu já havia decido. Nunca ficara tão sério até aquele momento, sabia que era a postura adequada de se ter, por isso chamei a atenção de todos e com bastante serenidade, qualidade rara em uma criança.

- Galera, eu tenho um segredo pra contar pra vocês. – Todos ficaram atentos e em silêncio, o que não foi difícil de conseguir – Eu nunca contei pra vocês porque nunca precisou, mas eu sabia que um dia ia ter que revelar isso pra alguém. – Os olhos dos mais velhos me fitaram ainda mais atentos – Eu só vou pedir que vocês me entendam e acreditem em mim.

- Fala logo véi! – Sussurrou alguém.

Resolvi não prolongar mais aquilo e soltei aquela informação com toda calma possível, era preciso convencê-los se eu quisesse que saísse como havia planejado.

- Eu tenho o poder do teletransporte, e posso tirar a gente daqui. – Falei, desejando que todos acreditassem, que não me menosprezassem, e notei que eles se entreolharam novamente – Eu descobrir tem algum tempo, mas funcionou outras vezes.

Todos permaneceram calados por alguns segundos.

- E como é que você faz? – Perguntou um dos mais velhos, o que se fizera líder.

Como não vi maldade nem dúvida na voz dele, sabia que poderia continuar, já tinha começado, agora era tarde pra voltar atrás.

- tem que todo mundo tocar em mim, aí eu vou fechar os olhos e pensar em um lugar pra levar a gente, mas ninguém pode soltar, entenderam?

Antes de eu terminar sentir mãos me apalparem por todos os lados, nas pernas, nos braços, nas mãos, no pescoço, pela cintura. Quando percebi que não faltava mais ninguém, olhei para o teto e cerrei os olhos. Fiquei alguns segundos parado, sentindo a ânsia de cada um dos meninos, os mais novos agarrando ainda com mais forças, os mais velhos segurando meu corpo sem se importar com as partes que tocavam. Senti um tremor subir-me o corpo, um calafrio alojar-se em meu peito, meus lábios se contorceram e num repente, sem poder mais me controlar, me explodi numa grande gargalhada.

- Eu to mentindo, seus idiotas!

Ri tanto que não pode me controlar. Minha vingança tinha sido perfeita e nunca mais eu seria o bobo da turma. É claro que tive que sair do quarto correndo, e pelo o que conhecia a minha querida turma, seria bem melhor enfrentar o bairro inteiro, junto com a polícia do que aquela galera irritada!