A frieza do relógio

Pé ante pé, fazia o balanço do dia. O cabelo escorria sobre a face pálida; as olheiras profundas sinalizavam sucessivas noites mal-dormidas. O rotineiro e irritante tilintar das quatro fechaduras que a mantinham segura a despertou dos devaneios. Virgínia entra em casa depois de quinze incansáveis horas no escritório. Sapatos atirados num canto, cabelo desgrenhado e sem as vestimentas formais, dirige-se ao computador – talvez as olheiras de fato se perpetuassem – a fim de terminar seus relatórios.

Era um árduo período. Divorciara-se havia pouco sem comunhão de bens. A mãe morrera recentemente e o irmão, universitário e inconseqüente, ficara sob seus cuidados financeiros – apenas. Diante de tanta infelicidade e angústia, restava-lhes lutar bravamente por uma promoção na empresa. Pediam-lhe paciência, chegaria sua vez. E assim, convenciam-na a prestar inúmeras horas extras de trabalho.

Devido ao tempo escasso, tornara-se extremamente metódica e sistemática. Logo, ao notar que já se passava das nove, decide começar. Ajustando-se na cadeira giratória – o assento rígido já não mais lhe incomodava – observa com olhos entreabertos o porta-retrato: baile de formatura. Lembrou-se da faculdade, quando, sem maiores responsabilidades, deleitava-se com as expectativas: onde trabalhar, quando enriquecer, quando e com quem se casar...

No auge de seus trinta anos, Virginia via-se frustrada: um casamento mal-sucedido, emprego medíocre, salário diminuto e muitos, muitos problemas. Ela, então, desarma-se: entrega-se aos prantos e vai checar a caixa de correspondência, convencida de que a exaustão física e psíquica não lhe permitiria trabalhar produtivamente. Abre-a: contas, contas, caixinha de calmantes que o psiquiatra receitara e, uma flor?! Sim, uma petúnia que trazia consigo um afável bilhete do vizinho. Haviam saído algumas vezes, e ele parecia mesmo interessado. O soluço deu lugar ao um sorriso estonteante; via-se um brilho em seu semblante. Naquele momento em que a lua brilhou mais forte e a êxtase sufocava todo o barulho ao redor, desligou-se da pressa, desilusão e impotência: o mundo parecia mais belo.

Com a carta junto ao peito, volta-se para a sala e depara-se com o restante das correspondências; que pena!

A cartela vazia de calmantes dormia feliz no chão por não ter precisado esperar a meia-noite.

Júlia Marssola
Enviado por Júlia Marssola em 08/02/2012
Código do texto: T3487972
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