Meninos de rua: o velório

O tempo é sempre difícil quando se é menino de rua. O perigo é iminente, seu percurso, um risco a sua sobrevivência, principalmente à noite, principalmente nos becos do Recife.

A faca corta o peito, as balas varam vidas ínfimas, filhotes da marginalidade de um Brasil desigual. A perseguição começa Coque adentro, Coelhos adentro, Ilha do Leite adentro, a noite escura ajuda a encobrir o crime. Os nomes das favelas não conseguem esconder a miséria do lugar. Esgoto exposto a céu aberto. Local onde a matança se concretiza, onde o caçador feroz alivia uma agonia infantil, com malícia e requinte.

Aqui, não só o sol é cortante. As navalhas de aço se espalham causando medo, dor e desordem. Os pequenos, para se protegerem empunham suas facas enferrujadas. Meios de proteção rudimentar, incapaz de parar o projétil, veneno mortal em cada golpe desprendido.

Mais uma manhã. O sol já se espreguiça do outro lado do morro. O movimento é de uma cidade acordando para o trabalho, adormecida para os males do cotidiano. Naquele beco, molhado do esgoto, adormece mais um filho do mundo. Não acorda mais. O desespero toma conta do pobre irmão, agarrado em suas vestes pintadas de vermelho sangue. O lençol branco não chegou. O corpo magro está comprimido entre uma dor que fugiu às pressas e as paredes de madeira cinzenta. O outro chora a morte do irmão magrinho, com expressão séria, beirando a dor.

Correm-se as velas, um novo choro começa a se ensaiar no sol ardente. Mais luzes ao redor do corpo, mais gente para a despedida rápida. Sabem que não mais irão vê-lo. Nem se quer terão o direito de passar a noite na novena, velando o corpo. Mais adiante ele será arrastado para dentro do carro coletor. Separados, irmãos se despedem a cada momento. Um calado, molhado, evadido. O outro, em soluços, palpitante, inconformado. A cada momento mais um chega, mais um se vai. A roda vai tomando conta do beco úmido. O choro transforma-se num coral. Todos a uma só voz a se contrair na dor do outro. Só quem não sofre é quem está ao centro, deitado eternamente. Preferiu sofrer de véspera, sofrer sozinho e sentir a vida o abandonar.

O velório em pleno dia rendeu ao morto uma dúzia de velas, um lençol branco, com direito a tingi-lo escarlate, algumas flores e a atenção de dezenas de parentes e amigos. O produtor do filme contabiliza mais um crime impunemente. Quem sabe não passou para ver o estrago, certificar-se do êxito. A coleta chegou, mais um presente, uma bolsa tamanho gigante. Pode entrar. Carregaram o morto, fecharam o saco, bandeja adentro, carro adentro. O morto não teve como se despedir de um por um. Recolheram os presentes, as lágrimas e deixaram a saudade.

Zé Beto
Enviado por Zé Beto em 22/01/2007
Reeditado em 22/01/2007
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