O mistério de Mel

Eu gostaria de ter percebido há mais tempo que havia algo errado na vida de Mel, que ela estava sofrendo algum problema, mas não fui capaz de perceber logo afinal,para nós, ela era uma garota feliz e despreocupada, boa aluna, moça bonita e simpática que sempre tinha um sorriso para os que encontrava.

Mel morava numa casa com o irmão mais velho e a mãe. O pai morrera quando ela era muito pequena. Eu havia me mudado para a casa da esquina e ainda não conhecia meus novos vizinhos. Uma tarde, eu vi que a casa tinha um abacateiro no quintal e me interessei. Será que eu poderia pegar um abacate? Subi no muro e vi que havia uma mocinha sentada sob o abacateiro. Ela me olhou. Assustei-me.Como resposta ao meu susto, ela sorriu:

-Olá, é o novo vizinho?

-Sim, chamo-me Pedro.

-Meu nome é Mel.

-Bonito nome.

-Quer um abacate? colheu um, dando-me.

Pensei que o nome combinava com ela. Ela era muito bonita e doce. Como o mel. Tinha uma pele café com leite, olhos de um castanho luminoso e cabelos negros, lisos e muito compridos. Parecia a Iracema de José de Alencar.

Tornamo-nos logo amigos. Mel era muito simpática e me apresentou ao irmão, que me recebeu bem, mas com certa reserva.

-Ora, Guilherme, seja simpático com o vizinho.

O rapaz sorriu para mim e vi que me avaliava, como se quisesse saber se eu seria bom para ela. A mãe deles trabalhava o dia inteiro como funcionária pública e Mel, para não ficar sozinha, ia estudar nas casas das amigas. Após me conhecer, tornei-me seu melhor amigo. Guilherme parecia sempre me vigiar discretamente, como se temesse qualquer coisa. Mel, porém, agia como se não percebesse que o irmão me via com reservas.

Em pouco tempo, conheci a mãe. Era uma mulher bonita e me tratou bem, mas me deu a impressão de não ter muito afeto pela filha.

Uma noite, eu ouvi a mãe falando com uma certa aspereza e Mel respondeu:

-Não, mãe, não é verdade. estava quase em lágrimas.

Escutei a menina saindo e vi que ia ao quintal, onde ficou debaixo do abacateiro, abraçada ao tronco da árvore, chorando.Quis perguntar o que havia, mas não quis ser indiscreto.

No dia seguinte, Mel se encontrou comigo e me cumprimentou, sorridente. Guilherme esperou que ela pegasse o ônibus para ir à escola e veio falar comigo:

-Sei que não tenho sido muito legal com você.

-Tudo bem. É ciume de irmão, não é?

-Não, é que eu não quero que a Mel se magoe. Bem, eu vejo que você gosta dela. Isso é bom. Tudo que eu quero é que a Mel seja feliz. Se você a fizer feliz, está tudo bem para mim.

Eu fiquei sem entender, mas me tranquilizei.Quem teria magoado a Mel para que ele se preocupasse?

Por um tempo, tudo correu bem. Mel e eu nos aproximamos mais e Guilherme ficou mais simpático, embora sempre vigilante. Quanto à mãe, ela me parecia sempre distante e, numa das tardes em que voltava do trabalho, escutei-a dizer aos filhos:

-Vou trazer meu namorado para jantar em casa.

Aquela noite, Mel foi se abraçar novamente à árvore e Guilherme foi atrás dela.

-Calma, Mel.

-Por que ela é assim comigo, Gui? Que fiz eu?

-Mãe não entende das coisas mesmo.

Eu queria saber o que ocorria e, numa tarde em que fui comprar pão, comentei com a dona da padaria:

-A Mel, às vezes, parece triste.

-Deve ser a mãe. Quando o pai era vivo, a mãe tinha um jeito estranho com a filha.

-Como assim?

-Ela não gostava que o pai segurasse a menina. Era como se tivesse medo de que ele gostasse mais da filha do que dela. Nunca foi uma mãe carinhosa. Todo mundo diz. E eu não entendo. A menina é um amor. Qualquer um gosta dela, mas a mãe é uma mulher esquisita, que age como se a filha fosse um estorvo. Ainda bem que ela tem o irmão.

A mãe saia com o namorado e deixava os filhos sozinhos em casa. Mel me chamava para estudar com ela e Guilherme, presença discreta, ficava assistindo à televisão ou jogando no computador. Notei que a mãe deles estava mais radiante, feliz. Levava o namorado para jantar em casa e preparava grandes pratos. Eu senti que Mel não gostava dele. Houve uma tarde em que ela se refugiou no quintal e Guilherme a seguiu. Espiei discretamente.

-Mel, o que é?

-Eu não sei, Gui. Eu não consigo gostar do namorado da nossa mãe.

-Eu também não. Mas, pelo menos, se ela tiver uma distração, ela deixa você em paz. Acalme-se.

Meses depois, a mãe casou com o namorado e levou para morar com os filhos e ela. Mel foi ficando desconfortável. Exteriormente, sorria e era a mesma garota amável que eu conhecera mas havia uma tristeza grande em seu olhar. Eu queria perguntar o que havia. Tinha algo a ver com o novo marido da mãe. O que era? Eu não sabia dizer. O homem não tinha jeito de má pessoa. Seria implicância de padrasto? Guilherme tinha um olhar de suspeita sobre ele que não me deixava confortável.

Houve um fim de semana em que eu estava encostado ao muro e ouvi Mel suplicar:

-É verdade, mãe. Acredite em mim!

-Sua coisinha egoista, você sempre rouba tudo de mim, desde que nasceu. Você roubou mais uma vez!

-Não, mãe.

Ouvi tapas. A mãe batera nela e disse:

-Vai ficar aí fora até aprender a se comportar como uma moça decente, ouviu? Se fosse comportada, isso não aconteceria.

Mel chorou e se abraçou à árvore, soluçando desesperadamente. Eu ouvi, querendo pular o muro e ir consolá-la, dizer-lhe que não estava sozinha e perguntar o que havia.

A mãe de Mel só a deixou entrar depois que Guilherme voltou do treino de basquete. Ele discutiu duramente com a mãe por puni-la e foi ao quintal. Espiei. Ele abraçou a irmã e perguntou:

-Mel, diga o que está havendo.

-Eu não posso.

-É o que eu pensei, não é?

-Guilherme, por favor, não me faça perguntas.

-Miserável! Maldito!

-Eu contei a mãe, mas ela...

Guilherme abraçou a irmã, que soluçou em seu ombro. Ele disse:

-Eu não vou mais deixar que magoem você, Mel. Não vou. Você é a pessoa que eu mais amo no mundo e eu morreria por você.

-Não morra por mim, Gui.

Depois de dois dias, a vizinhança acordou com os gritos da mãe de Mel. O filho a ameaçava e gritava:

-Pronto, mãe. Veja o que você merece!Por não ser mãe, eu lhe dou isso!

Mel gritava também e pude ver que ela estava trancada no quarto.

-Guilherme, abra a porta, irmão. O que está acontecendo?

A polícia chegou e vimos que levou Guilherme, ensanguentado, no carro patrulha. Um corpo saiu embrulhado em saco plástico e a mãe vinha atrás, gritando. Logo, chegou a ambulância, levando Mel, em estado de choque.

Não demorou a sabermos que Guilherme entrara no quarto onde a mãe dormia com o padrasto e enfiara uma faca no seu coração. A mãe acordou e vira que o filho o matara, ficando histérica. Guilherme, para que Mel não visse, fechara a porta do quarto da irmã a chave.Queria poupá-la.

Guilherme foi para um Centro de Menores e Mel foi morar com a avó paterna por decisão do juiz, que achou que a mãe não cumprira seu papel de cuidar da filha. A mãe se mudou do bairro, pois a vizinhança a estava escorraçando, dizendo que, por culpa dela, a filha fora vítima de um tarado e o filho se tornara um assassino.

Nunca mais vi Mel. Sei apenas que a avó disse que ela devia ir para bem longe de tudo aquilo e que, distante da mãe desnaturada, ela teria uma família de verdade. Soube que Guilherme recebia visitas regulares da irmã e da avó.

Será que Mel superará o que lhe aconteceu um dia? Não sei. Até hoje, eu costumo olhar para o abacateiro onde ela se abraçava, talvez esperando que ele a protegesse como a mãe nunca o fizera.