Allegro Non Troppo (1)

Click!

- Vamos, deite e feche os olhos.

Com essa frase conheci Tchaikovsky.

Confesso que não fomos bem apresentados. Culpa minha.

Na época, com dezesseis anos, desinteressado de musica erudita.

Garoto que pensava em rua, futebol e brincadeira.

Leigo, compreendia nada de musica.

Os acordes, a melodia, os compassos e os andamentos, som e harmonia na vitrola.

Nada de mais naquele ano sem interesse.

Afinal, não era o meu gosto musical. Sendo menino, escutava uma coisa chata e sem graça.

Tchaikovsky invadiu minha vida. E não era meu interesse.

Garoto feito eu, acostumado a canções da jovem guarda. Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa... Não que simpatizasse com a antiga moda preferida da mamãe.

Tchaikovsky distante da sintonia com a jovem guarda. Espaço contrário, conceito diferente.

O compositor russo transmitia para o ouvinte o que com um adolescente de dezesseis anos começava a despertar.

Reclamava.

- Escute. Antes de reclamar, escute.

O musico e a sinfonia. Fomos apresentados.

Conheci o compositor e a sinfonia nº. 6.

...

Faço-o deitar.

A criança deita no divã a contragosto. Movimentos agitados, imperativa.

No primeiro acorde, não sossega. Mexe o corpo.

- Lucas, calma. Calma, meu rapaz.

Só ouve. Escuta minha voz. Entende.

- Isso. Fecha os olhinhos. Consegue. Concentra-se.

Definitivamente a melodia penetra, entra no mundo da sinfonia.

- Relaxe. Relaxe. Escutou a musica, lembra? Mostrei pra mamãe.

Entende. Não diz nada.

Não espero que fale, quero que a musica entre na mente e o acalme.

Aos poucos conhece. Aos poucos o compositor russo o conquista.

- Temos o tempo excelente. Vocês são amigos.

Tem seis anos. Sem convívio com crianças da idade.

- Vive isolado o coitadinho.

Diagnostico da mãe. Jovem, vinte e três anos, bonita e separada.

- As crianças não entendem e o agride.

Informaram que o filho não é normal, procurasse especialista que compreendesse a situação.

O clinico do postinho encaminhou pra mim.

- Há cura, doutor? Meu filho tem cura?

É a quinta terapia e os resultados demonstram que aos poucos evoluímos.

Click!

- Que musica é essa?

- A sinfonia nº6 de Tchaikovsky. Principal base do tratamento que utilizarei no Lucas nos próximos meses.

- Ah, musica de rico né?

- É universal. Do infinito mundo.

A mãe aprovou. Deu carta branca.

- Posso acreditar, né, doutor?

Digo que sim, para confortá-la.

Quando traz o menino, chega embelezada de maquiagem, cheirando a xampu de supermercado. Unhas pintadas de vermelho, a favor do decote e calça comportada.

Não aguarda no consultório. Explica que há compromisso.

Despede-se do filho com beijo.

- Mamãe volta logo. O doutor cuidará de você.

Sai. Pra qual lugar, desconheço.

Relaxa. Não se agita. A atenção na musica faz com que fique imóvel.

- Isso Lucas, perfeito!

Não tardará em adormecer.

...

- Vamos, deite e feche os olhos.

A frase ecoa na cabeça.

Vejo a mão fina e magra movimentar o vinil e colocar na vitrola. O barulhinho da agulha a fazer ruído.

Sentava na poltrona que era só dela. E sonhava.

- Feche os olhos. Senão, não conseguirá entende-la.

Obedecia. Sem concordar.

Ficava quieta. Falava o necessário. Disposta a apresentar a musica.

Antiga moradora do bairro e figureira.

Na casa havia o Pavão, chamado de Galinho do céu, galinhas, pretas velhas, violeiros, pescadores e a arca de Noé.

Esculturas de barro. Arte antiga do século XVII pelos frades franciscanos, que encomendavam as mulheres na época de festas natalinas.

Figureiras como são chamadas, transferida de geração a geração.

Sentia-me fascinado, trabalho delicado e de calma. Naquele tempo com dezesseis anos não tinha paciência nenhuma. Carregava a leveza e calmaria que mais tarde eu acabaria entendendo.

Amava o erudito, principalmente as composições do compositor russo.

- Também amo a catira, o Moçambique, a festa do Santo reis. Sou brasileira e a arte e a cultura brasileira em primeiro lugar.

Adorava cantar cantigas populares, Árias portuguesas e canções folclóricas.

- Daria uma bela soprano dramática. Pra mim restou ser figureira. O que me faz orgulhosa.

Aos poucos introduzia o que eu relutava. Não detestava, na verdade não compreendia. O que não compreendemos, repelimos, reclamando que é ruim.

A gente pensa que gosta. Fazem-nos acreditar. Mentira.

Sem pressa e com jeitinho ia entendendo o que transmitia. Os acordes, os instrumentos, os andamentos, a tensão e o clímax. Para mim, a explosão, o êxtase, o tapa na cara.

Recordo do rostinho ao analisar meu estado. Sorrisinho aberto e distraído de vitória conquistada.

Pedi que repetisse. Atendeu. Perguntei se haveria iguais ou quase a que ouvi. Existia. Botou pra tocar com muito prazer.

Entretanto, a sinfonia nº6 me despertou. Nasceu à longa amizade entre mim e o autor da belíssima composição.

Com o tempo cresci, estudei, terminei os estudos e especializei-me em musicoterapia.

Sou musicoterapeuta há quinze anos e com orgulho amo a profissão.

Se não fosse à figureira, com suas mãozinhas a modelar o barro e a calmaria, eu não seria o que sou hoje.

...

Lucas cochila.

Não significa que cansou ou não aprovou, apenas interrompeu a agitação.

A musica acalma. Perfeitamente bem. Respiração leve e descansada.

- Consegue me ouvir?

Abre os grandes olhos claros.

- Muito bem. Estamos indo bem, não estamos?

- Não responde. Encara com enorme olhar. Não preciso entender, a maneira de reagir é um sinal positivo.

- Isso, garoto. Estamos nos entendendo.

Seus olhos grandes percorrem a extensão do consultório. A ampla janela mostra o céu carregado de nuvens, os arranha-céus dos prédios. O enorme aquário com peixes de cores roxas e vermelhas, os quadros de pinturas abstrata e démodé, o busto da Vênus mal feita, a estande de livros, a pequena iluminaria que gira devagarzinho e o toca-cd.

A sinfonia se encerra.

Busca com atenção a razão da musica ter parado.

Indiretamente olha pra mim. Levanto.

Click.

Volta de novo. A criança reconhece que está lhe fazendo bem. Precisamos estudar alguma atividade.

A musicoterapia traz para o paciente musicas que transmitem relaxamento. Para isso são utilizadas as eruditas ou chamadas clássicas.

Existem outros estilos musicais utilizados por musicoterapeutas.

Há aqueles que utilizam instrumentos, como o violão e a flauta, gerando ao paciente a aprender a manejar e tocar.

Talvez consiga trazer resultados com o violão da próxima vez.

Tchaikovsky esteve acompanhando-me nas épocas boas e tristes.

No dia que perdi Marcele.

Marcele... Morávamos juntos. Planejamos sonhos. Vivendo de amor. Jovens amantes.

Com a convivência íamos perdendo. A rotina nos assassinou. Estilhaçou os sentimentos.

No dia que foi embora, abriu a porta decidida.

Entrou, fez a mala.

De mala na mão, tentei entende-la.

- Nunca entendeu. Fingiu que entendia. Acabou.

Fiquei calado.

A sinfonia soava alto. Enfureceu-se.

- Detesto, detesto os dias e meses que escutei essa porcaria!

Bateu a porta. Não disse adeus.

Nunca procurei outra pessoa. Amava-a demais. A rotina nos separou.

Vendi o apartamento. Lembranças e vultos deixaram marcas tatuadas. Mudei-me perto do centro.

Desde que partiu continuei sozinho. Considerei a solidão.

Não adorava Tchaikovsky.

- Por que não escuta musica normal em vez dessa merda?

- É pra ajudar no trabalho com as crianças. Expliquei pra você.

- Sim, mil vezes. Mil vezes tocando essa droga!

Quantas vezes tentei faze-la compreender? Alienada, só agia igual às pessoas. O mesmo gosto, a mesma roupa e comportamento.

Mais tarde entendi que éramos de mundos diferentes. Não mudaria o seu por minha causa.

Demorei pra acostumar a ausência dela.

...

A hora da consulta termina.

A mãe embrulhada de satisfação com sorriso largo abraça o filho.

- Como foi heim, garotão?

Não diz. Fita o rosto dela.

- Ó, muito bom, muito bom!

Abraça. Aperta-o no corpo. Tem calor pra dar.

Hoje de maquiagem, enorme decote na blusa rosa e calça branca. Cabelo escuro solto ao vento cheirando xampu barato. Não possui pose de dama. Tem gestos abertos.

- Lucas progride bem, né doutor?

- A cada dia evolui.

- Fico grata.

Na primeira vez, estava cismada.

No dia seguinte contou a sua vida.

Namorou, casou e separou.

Dois anos casada. Não ganhou vida de princesa.

Viciada. Bebida e droga. Violência e estupidez.

Fumava e injetava o que aparecia.

- Dou graças por não estar infectada.

Um dia disse basta. Afastou a sujeira, a imundície, queria a alma e o corpo limpo.

A gravidez ajudou a sair do inferno. Decidida mudou de vida. Ver o filho crescer.

- O diabo possui representantes.

Não foi fácil. O marido viciado, agressões e palavras de ofensas.

Procurou a lei, o juizado, entrou com pedido de separação.

- Ralei, felizmente estou livre.

Teve o menino. Mudou-se para a casa dos tios. Meses depois arrumou emprego. Algum tempo conseguiu cantinho pra ela e a criança.

Do marido não sabe de muito detalhe. Não está interessada.

Esqueceu do filho. Tomasse vergonha e mudasse de jeito como ela tomou.

- Não quero ficar no mundo perdido igual a ele.

A gestação foi perturbada devida a substancias químicas ingeridas.

- Por isso ficou desse jeito?

Explico que o motivo seria esse.

Crianças iguais ao sintoma do Lucas nascem pelo fato das gestantes no período da gestação consumir alguma espécie química narcótica. Ou remédios exagerados.

Consolei para não tomar como culpa o problema do menino. Com jeitinho e tranqüilidade estará habito a conviver em sociedade.

- É pra isso que ele está aqui, não é verdade?

- Exatamente.

- Ficarei mais tranqüila.

Retiro o CD do toca-cd. Coloco na capinha e passo pra ela.

Desenha a interrogação no ar.

Esclareço.

- Estou passando uma cópia para na sua residência realizar a terapia. Ajudará no desenvolvimento do tratamento.

- Se for esse o caso, tudo certo. Né, filhão?

Arregala os grandes olhos para a mãe.

Despedimos-nos com abraços e calorosos beijos de despedida.

Na sala de espera uma menina de cinco anos aguarda acompanhada da irmã.

Informo pra esperar alguns minutos.

Anoto os resultados e sinto-me satisfeito com o progresso que tivemos. Muito grato à sinfonia, que vem ajudando progressivamente. Felizmente os resultados são excelentes e ouvindo depoimentos dos pais fico imensamente feliz.

Antes, lavo o rosto. Ajeito a roupa e o cabelo. Olho-me no enorme espelho de corpo inteiro. Está na hora de perder alguns quilinhos. Vou à porta, abro e chamo a menina.

- Maria, vamos entrar?

Entrega o celular para a irmã e entra como um bichinho retraído.

Mais uma hora de musicoterapia.

...

Chego às oito e meia da noite. Entro no chuveiro. Banho pra retirar o cansaço e o dia. Hoje, alem do Lucas, atendi oito crianças. Tirando o horário pra almoço na marmitex do restaurante que fica do outro lado do consultório. Digamos que gasto um tempo desfavorável de descanso. Às vezes tomo consciência de que necessito esticar o tempo um pouquinho. Saúde em primeiro lugar.

De banho tomado e relaxado. Sofá, revista, drink e Tchaikovsky. Preciso do amigo russo pra aliviar e descansar o corpo.

A noite ganha preciosa beleza...

...

Sou acordado pelo barulho desesperado do telefone.

Busco o relógio e me assusto. São duas e quinze da madrugada. O telefone grita.

Sonolento e devagar retiro o fone do gancho e falo de voz mole.

- Alô.

- Ah, que bom! Desculpa por ligar tão tarde.

A surpresa maior que susto, fez-me despertar por completo. Do outro lado da linha a mãe do Lucas de voz nervosa.

- Sim, estava dormindo, mas pode falar. Alguma coisa com o Lucas?

- Não, não. Está bem. Quer dizer, não sei. Ai, estou desesperada! Não tinha mais ninguém pra chamar. Encontrei o cartão com o numero da sua casa e do consultório e liguei.

- O que está acontecendo? E o menino?

- Ficou agitado, mas se acalmou. Venha pra minha casa o mais rápido que puder, por favor!

- Houve algum acidente?

- Não. Com ele não. É o pai. Com o pai dele!

- O que ele fez?

- Ai... Misericórdia... Matou-se! O desgraçado se matou na frente do filho!

Começa a chorar. Digo pra acalmar, que logo chegaria. Peço endereço. Pergunto se utilizou o 190.

- Ainda não. Ele tá morto no chão da sala, com a cabeça estourada. Ai Jesus!

Novamente falo pra se acalmar.

- Chame a policia. Vou me arrumar e tentar chegar o mais depressa possível.

- Ok. Venha logo, por favor!

...

Demorei quinze minutos para me arrumar e mais vinte pra encontrar o endereço.

No portão da casa dois veículos da policia. Um policial está encostado num deles. Paro o automóvel um pouco mais pra frente.

O policial encara-me. Aviso que sou conhecido da proprietária da residência. Diz tudo bem com a cabeça. Entro.

A casa fica no fundo. Um extenso corredor de chão de terra molhada. Deve ter chovido na parte da tarde por aqui.

Na porta de entrada mais um policial que parece pastor alemão. E dentro mais três.

Ela me vê e corre como se eu estivesse salvando de alguma prisão.

- Você veio, você veio!

Sem nenhuma timidez pula em mim e me abraça.

Fico vermelho, sem jeito e desconsertado. Além dos policiais fazerem aquela careta de interrogação.

- Graças a Deus que chegou.

- Tá tudo bem. Estou aqui.

- Ah, que ótimo! Estou muito nervosa. Muito mesmo.

- E Lucas?

- No quarto. Coitadinho... Viu tudo. Viu o pai se matar na frente dele!

Abraça-me chorando.

- Resolveremos o problema. Precisa se concentrar. O filho precisa muito da mãe.

Cessa o choro. Limpa os olhos com a mão.

Mais calma reconta o que contou a policia.

O corpo estendido na sala coberto com cobertor. Há imenso sangue manchando o chão de taco velho. A televisão ligada transmite um desenho animado que nunca imaginei.

Antes de contar o suicídio do ex-marido entra no quarto e traz o Lucas pra fora.

Ele me vê e ergue os olhos grandes. A mãe explica que me chamou pra cuidar deles. Pisca os olhos. Entendo como um sinal de aprovação.

Fico admirado pela reação. Nenhuma crise, choro, agitação e nervosismo. A mãe fala que no começo ficou agitado e que aos poucos foi controlando.

Também não sei se o comportamento é bom ou ruim. Não sabemos o que sente. Com o tempo descobriremos. Felizmente estou admirado.

E narra o ocorrido, enquanto a policia faz a perícia e estudo do corpo.

Após saírem do consultório entraram no supermercado.

- Estava precisando de xampu.

No caminho encontrou com a amiga, revelou que o marido foi promovido de cargo no serviço. A conversa durou meia-hora.

No trajeto de ônibus que custou mais quinze minutos de espera e mais outra meia hora pra chegar. Parou na venda de um senhor de nome Júlio e comprou leite e pão. Encontrou com outra amiga que correu pra pegar a filha na escola. Achou o portão sem cadeado. Desconfiada, pegou na mão do filho e entrou.

- Do portão dava pra ver a porta aberta.

Engolindo o medo foi entrando e de costas pra fora e sentado o ex marido assistia TV.

- De susto, larguei a mão do Lucas.

Respirou fundo e chamou o ex-marido.

- Tava chapado de droga e bebida. Cheirou muita porcaria.

Veio de encontro ao filho, ela não deixou que encostasse. O empurrou. Ordenou que saísse, deixasse-os em paz.

- Queria voltar.

Caiu no choro. Desesperado, pediu que o perdoasse, perdido, cometeria loucura.

- Falei que chamaria a policia, assustava o menino.

E no desespero, sabendo que a família não o queria, puxou o revolver da calça.

A mãe e os irmãos também o rejeitaram. As atitudes erradas fizeram à família ficar mal falada. Nem próximo, nem de longa distancia desejavam saber dele. Morto pra eles.

- Sacou o revolver e imaginei que atiraria em mim e na criança. Falou dos irmãos e da mãe. Restava eu e o filho. Não o aceitava, não do jeito que apareceu.

Sem que pudesse impedir disparou contra si mesmo na cabeça.

Na frente do filho. Morto, com a cabeça estourada.

Como a casa fica ao fundo, os vizinhos e o pessoal da rua não escutaram. Pensaram que fosse disparo de bombinha.

Lucas começou a ter grise, rapidamente conseguiu acalma-lo. Colocou-o no quarto, pediu que ficasse tranqüilo, traria alguém pra ajudar. Ele com enorme olhar concordou.

Voltou à sala. Não sabia pra quem pedir ajuda. A família morava no interior, longe, quinhentos quilômetros.

Sentada e chorando, encarando o corpo no chão. Rendeu minutos, segundos e horas.

- Aí lembrei do numero do doutor.

É a partir da ligação que chegamos ao ponto da narrativa.

Pegaram o corpo e o levaram para o caminhão do IML. Vizinhos, curiosos entram. Pedem informações, o que aconteceu. A rua acorda.

O policial pastor alemão informa que necessita depor na delegacia e que precisava de mim de testemunha.

Não há sinfonia pra ajudar no momento.

Segura firme minha mão. Pra não permitir que eu fuja, deixe-os sozinhos. Também segura a mão do filho. Aperta-o para protegê-lo.

- Fique conosco, por favor...

Levam-nos na delegacia. Lucas fica com a amiga até voltarmos.

Depoimento demorado, chato e cansativo. Delegado casca grossa e desconfiado. Formula indiretas, perguntas e dúvidas.

O dia está claro quando termina.

Diz que não gostou das indiretas do delegado.

Falo que é normal da parte dele, que age pra descobrir evidencias e suspeitas.

Tem medo. Tem medo de retornar pra casa ver a cena de novo. Arrepia-se. Calafrios no corpo.

- Há espaço no meu apartamento, ficarão o tempo que quiser.

- Não incomoda?

- De maneira alguma. Será até bom alguém no apartamento.

Agradece contente. Diz que sou um amor de pessoa, anjo bom na vida deles.

Chegamos e pegamos Lucas na casa da vizinha.

- Filhão, vamos pra casa do doutor. Ficaremos até a mamãe ajeitar a nossa casinha.

Pisca os olhos para mim. Quieto, a cara serena, olhar arregalado e pensativo.

Pega roupas e pertences, alguns CDS pra levar. Passa o endereço para a vizinha caso a policia fosse procurá-la. Dá adeus, voltaria. Sem condições de ficar.

Os vizinhos entendem. Dão boa sorte, vá com Deus e tudo ficará bem novamente.

Ambos cansados. Sono. Mostro o banheiro. Tomam banho. Em seguida minha vez.

Dormimos. Arrumo a cama pra eles. Fico no sofá.

- Obrigada. Por mim e por ele...

Beijo no rosto.

Ligo pra secretaria. Explico por cima o que ocorreu. Peço para avisar aos pacientes que não haverá consulta e que ao terminar fechasse o consultório e fosse pra embora.

...

Click!

- Vamos, deite e feche os olhos.

Click!

Abro os olhos. Está cheirando a xampu de supermercado. O decote mais provocante, o cabelo escuro voa rebelde. Calça jeans comportada.

Assustado, levanto do sofá.

- Algum problema?

O dia acaba. Oito da noite. Céu sem estrelas. Previsão de chuva. Lucas está dormindo.

Coloquei Tchaikovsky pra relaxar.

Click!

Interrompe a sinfonia.

- Algum problema?

Ri do meu susto. Não compreendo.

- Tá tudo bem. Desculpa.

Ri.

Senta ao meu lado.

- Sabe, preciso que eu e Lucas nos entendemos na hora da comunicação. Mais pra ele. Sei que escuta. No entanto, como poderá se comunicar, falar, necessitar de alguma coisa?

- Ouviu falar de L.I.B.R.A.S? (2)

- Não. Acho que não.

- É a linguagem de sinais. Utilizado para pessoas que possuem o mesmo problema dele.

- Ah, interessante!

- Tenho uma amiga que possui um instituto. Explicarão sobre L.I.B.R.A.S.

- Ah, isso é bom! Procurarei o instituto.

Levanta.

- Colocarei uma canção que adoro muito. É bem gostosa de ouvir. Romântica.

Retira o CD de dentro da capinha sem encarte e foto.

- Excelente ouvir nesse período.

Click!

- Vamos, deite e feche os olhos...

Soa os primeiros acordes...

A voz grave e feminina ecoa.

I loves you, Porgy / Don't let him handle me. (3)

And drive me mad/ If you can keep me.

De olhos fechados. Sentindo a canção. A melodia e a voz...

I wanna stay here with you forever/ And I'll be glad.

Uma terapia aos ouvidos...

Yes I loves you, Porgy/ Don't let him take me…

A vida transforma-se na rica canção.

Notas:

(1) Allegro Non Troppo: Adágio: Primeiro movimento da sinfonia nº 6 de Tchaikovsky.

(2) Libras: Língua Brasileira de sinais.

(3) Trecho da musica I Loves You, Porgy da peça Porgy and Bess de George Gershim.

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 18/04/2012
Código do texto: T3619873
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