Não Rasgue as Páginas

Escrevo em diário desde a infância: era minha prevenção contra a falta de memória.

Em pequena, resolvi que registraria meus dias apenas para me divertir. Mais tarde, por prevenção – não queria que os detalhes da minha vida se perdessem pelo buraco negro da memória. Um tempo depois, escrevia por puro prazer, porque aprendi que as coisas que esquecemos às vezes merecem ser esquecidas. E hoje escrevo por desespero. Os dias têm passado e se perdido pelos meus passos. Deus! Já estou com quase 28 anos e parece que mal vivi.

O problema desse registro louco e desenfreado é que, realmente, os diários não me deixam esquecer os erros que cometi.

Foi o seguinte: em adolescente, eu namorava um menino. Um dia, cansei dele e conheci outro rapaz. E errei ao me relacionar com esta segunda pessoa, sem ter terminado com a primeira. Antes que joguem pedras em mim, posso tentar me explicar? Eu era adolescente! Pronto, expliquei. Tinha uma cabecinha vazia e afoita.

Tinha 15 anos de vida e 15 parafusos a menos em minha estrutura mental. Na época, lembro que não consegui contar a ninguém esse fato. Apenas terminei o relacionamento com o menino que estava antes e fiquei sozinha, pensando. Construindo um muro que hoje se chama caráter. É claro que tudo isso foi registrado em um diário com capa azul, ilustrada com passarinhos. Com letras trêmulas, escrevi, palavra por palavra, o registro de minha primeira infidelidade.

O tempo passou, as páginas do diário de capa azul acabaram, e eu migrei para outra temporada: um caderno de capa amarela e 100 folhas pautadas em branco.

Anos depois, ao reler o caderno dos meus 15 anos, relembrei da infidelidade. Este fato estava escondido atrás do muro do meu caráter, escondido pelas letras feias e trêmulas, escondido pelo argumento absurdo de que somos jovens e precisamos conhecer outras pessoas. Ao ler isso, fiquei com tanta raiva e vergonha, que quis rasgar o diário inteirinho. Me deu um baita medo, porque o diário estava recheado com aquela letra extravagante que era a minha caligrafia durante as espinhas. Comecei a ler, sôfrega, aquelas páginas, procurando outro erro mortal, outro pecado capital. Mas não achei; apenas alguns erros de português.

Com uma caneta azul, muito parecida com a usada para narrar a infidelidade, rabisquei meu relato traidor. Bem rabiscadinho, deletei do diário o beijo arrebatador com sabor de bala freegells, o frio na barriga, o perfume diferente, o chupão perto do ombro, os planos de eternidade que duraram apenas algumas semanas, a palavra “jeito” escrita com a letra g.

Assim que terminei de apagar isso do roteiro da minha vida, me arrependi. Me senti traidora comigo mesma. Eu cometi um erro, sim, mas e daí? É passado… quem é que não tem um muro pichado de vermelho dentro de si? No meu, estava pichado um coração vazio.

Com o coração arranhado, segurei o diário diante dos meus olhos, arrependida. Aquelas páginas rabiscadas, escondendo meu segredo, eram patéticas. E foi aí que um bilhete caiu de dentro das entranhas daquele caderno grosso e colorido. Devagar e assustada, abri o bilhete. Lá de dentro, caiu um papel de bala. No bilhete, a letra não era minha. Era uma caligrafia pequena, masculina e objetiva, como que escrita a faca. Dizia:

“Você é uma pessoa muito apaixonante. Determinada. Guarde meu beijo junto com esta bala”.

Como se apaga um beijo? Não se apaga.

É isso. Nunca apague o seu passado. Não rasgue o roteiro da sua vida. Nós somos a colcha de retalhos com momentos escuros e amarelos e vermelhos e azuis, vivendo lado a lado. Não rasgue as páginas. Não rasgue as páginas. Não rasgue as páginas. Nunca.

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