É noite

Mais uma noite nasce na cidade solitária.Digo isso porque apesar dela nunca dormir, penso que todo cidadão que aqui sobrevive é como eu. Solitário.Os carros percorrem as ruas dilacerando o asfalto que recebe tetricamente a chuva noturna. Aviões furiosos perfuram as nuvens arroxeadas suspensas no ar. Vejo mágica ao ver esta cena tão singela, mas, especial para qualquer lunático feito eu. A chuva aumenta seu furor.As luzes da cidade, mesmo ofuscadas iluminam os corações falidos das pobres pessoas que tentam esconder seus rostos do aguaceiro impetuoso.

Encolhido num canto de um bar, minha garganta de hora em hora é banhada por uma bebida autenticamente maléfica à minha vida. Não posso fazer nada, a chuva não pára e por alguns momentos isso me faz sentir vivo e livre.Permaneço infeliz , mas a felicidade é obtusa.

O tempo deixa suas pegadas e a chuva me traz lembranças de um momento único que vive preso em meu passado.É noite em minha vida também. Lembro-me que meu último beijo foi presente de uma despedida em chuvosa e hostil noite. Quem eu amava partiu, rompeu de alguma forma os fios da paixão alojada em mim. Eu poderia escrever canções de amor agora. Tenho vontade de fazer isso. Peço um lenço de papel do garçom e uma caneta. Contudo, as palavras continuam aqui, encravadas e aprisionadas como as gotas de água que caem e não retornam mais para o céu que desaba chorando sobre a cidade hoje.

A noite que me traz um sentimento de perda me ganha com as minhas atitudes pueris.Estou cansado, mas não desanimado. Pago ao garçom o que devo e começo uma longa caminhada rumo a lugar algum.A chuva molha meus cabelos, meu espírito se engrandece. É noite e Deus olha pra mim .Ele também sente solidão, vive com o destino das pessoas em suas mãos. Sim, qualquer tragédia e a culpa é dele. Ingratos.

Eu continuo minha caminhada. Mergulho meus pés em poças de água. Estou agindo como criança. Brinco com os cachorros abandonados e eles retribuem o meu carinho balançando os seus rabinhos, de um lado para outro.Na praça, subo e ando por entre os bancos enferrujados. No canteiro, o jardim úmido e florido abriga um pouco da alegria que me falta todos os dias.

Ninguém entende o motivo dessa minha ação, porém já não posso aceitar o lado atroz da vida. Chuto latas de lixo, chuto placas informativas, distribuo beijos para as mulheres que circulam acompanhadas. Um pouco de canção ainda me anima.

É noite meu amor, e o vento sacoleja sem piedade os galhos das árvores. É noite meu amor e eu estou triste... porque não vejo em mim quem eu realmente sou .

Um desejo me acende. Entro no carro. Perdi minha chave, na verdade , sinto-me perdido a todo momento. Não quero me achar, o perdido é sempre mais cobiçado que o achado.

Ando pela cidade resfriada, bares, sonhos, amores. O mundo é meu sem tocá-lo.Levanto minha cabeça, deixo o vento bater minha face. Sinuoso cruzo as ruas . Sinuoso é meu coração que não chega em destino algum.

Vejo-me triste, minha vista turva só me enxerga assim. Terminarei meus dias contemplando a noite lúgubre. Amanhã será sábado e talvez eu não volte a viver .

Meus dias são noites, somente noites.

É hora de entender o obscuro, vou seguindo, se chegarei isso não cabe a mim responder. Desistir do fim é nunca ter tentado começar o que nunca foi sonhado. Perdido estou, desejo abandonar meu corpo.Penso em tudo, mas sempre esqueço de mim.

Continuarei a caminhar, o Sol surgirá como em todas as manhãs. Pessoas acordarão, carros correrão, mas meu coração preso e descontente ainda viverá sem fulgor, porque para ele será sempre noite.

Mayanna Davila Velame
Enviado por Mayanna Davila Velame em 02/02/2007
Código do texto: T367626
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