Nem santo, nem demônio

1994. Naquela época o hit Mr. Vain do Culture Beat havia invadido as pistas, porém, Beat Dis do Bomb the Bass ainda era muito escutado pelos fãs de música eletrônica. Mas meus amigos e eu ainda preferíamos conferir o álbum preto do Metállica, no qual foi gravada Enter Sandman.

Naquele ano comecei a trabalhar em um escritório de contabilidade. Eu era uma espécie de office-boy, mas que conhecia muito de computação para a época, então, minha jornada era dividida em visitar clientes para entregar guias e receber mensalidades e operar os sitemas contábeis, de folha de pagamento e fiscais do escritório.

Certo dia, recebi a tarefa de ir até um bar decadente, cujo dono era cliente do escritório e estava devendo várias mensalidades e com muitos impostos atrasados.

Cheguei ao bar e não havia ninguém. O balcão era de uma espécie de pedra com pequenos quadrados em preto e branco. Na prateleira, várias garrafas empoeiradas de cachaça, jurubeba e conhaque barato.

Olhei para o teto, estava forrado de teias de aranha. Um gavião carcará empalhado e pendurado por uma linha de pesca no telhado fazia as vezes de enfeite.

Olhei para os lados e nada. O lugar era meio sinistro, beirava o abandono e a casa do dono era nos fundos.

Quando fui bater palmas para chamar a atenção de alguém, o homem apareceu.

Era um negro alto, com seus sessenta e poucos anos, mas ainda forte. Usava uma camisa branca toda furada pelas brasas de caíam do charuto de palha, o qual estava sempre no canto da boca.

Os olhos estavam vermelhos feito brasa e atravessados no peito do homem, vários colares guia, como os usados por adeptos do candomblé.

Quando apresentei as cobranças de impostos atrasados e os valores de mensalidades, o homem disse:

_Vamos entrar.

Fiquei meio desconfiado, mas afinal era meu trabalho, tinha que passar as guias e as cartas de cobrança e pegar a assinatura do homem.

Ele entrou por uma porta e pude notar que ele não tinha um dos pés. Ao invés de sapato, usava uma espécie de calço de borracha com o qual pisava no chão de vermelhão, fazendo um barulho estranho ao mudar o passo.

Já na cozinha simples da casa sentamos em volta de uma velha mesa de madeira, daquelas que possuem uma única gaveta no meio e tive um pouco de receio do que o mesmo poderia tirar de dentro daquela gaveta. Talvez uma arma de fogo ou uma faca.

Ao contrário, tirou um óculos de grau, bastante riscado, o qual colocou na ponta do nariz para ler os documentos.

Ao terminar de ler, ele disse:

_Sabia que eu já matei seis homens, filho?

E eu do outro lado da mesa, apenas balbuciei:

_Hã?

O homem levantou, entrou no bar e voltou com uma garrafa de jurubeba Leão do Norte e dois copos. Colocou um copo à minha frente, abriu a garrafa e despejou uma dose generosa para mim e outra para ele.

_Desculpe senhor, estou de serviço, não posso beber.

Ele apenas disse:

_Beba.

Dei uma bebericada e voltei o copo para a mesa. E tentei falar novamente:

_Senhor, eu preciso apenas de sua assinatur...

Fui interrompido novamente:

_Matei todos os caras que ajudaram a cortar meu pé. Eu tinha 18 anos quando fugi de uma fazenda onde meu finado pai trabalhou. Dos 8 aos 17 não ia para a escola, ajudava a plantar algodão, café e cuidar de gado. Não recebia nenhum dinheiro, só um colchão sujo, cheio de percevejos e comida fria no almoço e no jantar. Quando fugi, o capataz da fazenda mandou cinco capangas me seguirem e depois que corri por sete quilômetros fui pego e tive meu pé cortado com um machado. Matei um por um, usando um podão de cortar cana.

Como eu não tinha palavras para serem colocadas no momento, permaneci mudo e apenas mentalizei que na primeira chance sairia correndo daquele lugar.

O homem pediu que eu bebesse mais um gole da amarga bebida. Eu mandei o restante e ele completou até a marca da boca do copo.

De repente, quando olho para o lado, vi um podão de cana pendurado pelo cabo em um dos caibros da pequena cozinha.

Meu pensamento foi um só:

_Fudeu.

A vida nos ensina muitas coisas. Naquele dia, caso eu tivesse uma arma de fogo, com certeza teria descarregado naquele velho homem, não por ódio ou maldade, mas pelo imenso temor que sua presença e aquele lugar provocavam em mim.

Mas ao contrário de tudo o que eu pensava, o homem buscou uma pasta, e começou a me mostrar todos os pagamentos que já havia realizado, e foi dizendo normalmente:

_Está vendo aqui filho, hoje o bar não dá mais movimento igual antigamente. Só não fechei porque minha aposentadoria paga pouco e vendendo uma dose de pinga hoje e outra amanhã consigo colocar o feijão na panela.

Na mesma hora respondi:

_Tudo bem, senhor. Caso o senhor deseje dar baixa na firma, é só passar lá no escritório e falar com o patrão. Tenho que ir, pois estou atrasado e preciso passar no banco.

E o homem respondeu:

_Vá com Deus, e quanto a história de ter matado homens, é tudo mentira, perdi meu pé num acidente de moto, ok?

Eu respondi um OK tímido e desconfiado. Até hoje não sei qual das duas histórias é verdadeira. Mas aquele velho homem escondia um mistério que eu nunca quis descobrir.

BORGHA
Enviado por BORGHA em 30/05/2012
Reeditado em 31/05/2012
Código do texto: T3696404
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