Modernidade tardia

Ferdinando estava em casa sozinho. Sua mulher Josina havia ido fazer compras e seus dois filhos estavam na escola. Era uma manhã fria. O sol havia perdido a coragem de sair do seu aconchego, enrolado em nuvens densas e escuras. Que momento maravilhoso – pensou Ferdinando – agora posso descansar e ter um pouco de sossego que sempre quis. Foi à cozinha, lugar pequeno, mas bem mobiliado e limpo, pegou uma caçarola do armário que ficava a uns dois palmos de altura acima de sua cabeça, encheu-a de água para fazer café e colocou a fogo baixo. Essa era uma característica de Ferdinando, tudo ele fazia com calma e com tempo. Cortou três pães, passou manteiga quente, pegou um pacote de bolacha palito, uma caixa de leite e colocou tudo sobre a mesa, esperou a água ferver. Enquanto o fogo se preocupava em aquecer a água ele ruminou um fato que lhe aconteceu quinze dias antes. Um grande amigo de infância o havia visitado e lhe confiado um segredo. Era apenas uma suspeita, mas o seu amigo queria desabafar com alguém. Ferdinando, ao pensar nas palavras de Jorgino, quis se preocupar - se Jorgino veio até aqui naquela noite chuvosa, todo apavorado, é porque algo sério está acontecendo – refletiu e calou-se instantaneamente. De repente, o telefone toca. É Jorgino. Ele confirma a suspeita a seu amigo Ferdinando: havia desenvolvido um tumor maligno em seus dois pulmões e já estava em estado bastante avançado. Fumara bastante desde os seus quinze anos. Começou a fumar para mostrar aos amigos que já era homem grande, e também por outro motivo: impressionar uma menina, a mais bonita da escola, que acabou sendo sua namorada, e, posteriormente, sua esposa, mas por apenas cinco anos. Florinda o trocou por um homem mais vistoso, mais elegante, funcionário público e que não fumava, nem bebia: o seu professor de química. Foram viver lá no Nordeste do Brasil em uma pequena cidade chamada Misericórdia. A duras penas, Jorgino superou essa fase. Mas o pior acabara de chegar. Ele fala a seu amigo que o médico lhe havia prognosticado apenas uma semana. Nem curtiu o tempinho que lhe restava. Passado meio minuto de tempo, o telefone emudece e ouve-se um eco de último suspiro. Ferdinando divaga em seus pensamentos: será que (...)? Mas ao virar repentinamente, o seu olhar vai de encontro à caçarola cuja água já fervia há um bom tempo. Coa o café, senta-se à mesa, serve-se, come à vontade. Depois de satisfeitas as suas necessidades, vai até a sala de televisão e assiste a um bom drama em curta-metragem, emociona-se e chora, ao mesmo tempo, distrai e sorri. A sua mulher chega das compras e vai à cozinha preparar o almoço. Meio dia em ponto, seus dois filhos chegam da escola. A família cumpre o ritual de sempre: senta-se à mesa para mais uma refeição do dia-a-dia. Amor, você não sabe o que aconteceu: Jorgino partiu dessa para uma melhor – comenta Ferdinando. Não me diga! Que horror! – responde a sua esposa e acrescenta: Benzinho, você não sabe quem eu encontrei no mercado hoje (...).