CORPOS TRÊMULOS

Contos Urbanos.

Morei no Siqueira Campos muitos anos. Na minha época o Siqueira tinha manguezal e mangueiras espalhadas por todo o bairro. Onde hoje chamam de Aribé, meus pais tinham uma casa. A nossa região não tinha asfalto, nem saneamento público, mas, a amizade dos vizinhos cobria tudo. Recordo-me de seu Bartolomeu. O homem veiou do Rio Grande do Norte visitar a filha casada com um Funcionário dos Correios e nunca mais voltou. Comprou uma casa no Aribé; plantou rosas e trepadeiras, plantou uma mangueira, uma goiabeira, e um pé de comigo-ninguém-pode. Quando a televisão chegou a Aracaju, as pessoas não muito ricas, nem muito pobres iam para a Praça do Siqueira, assistir os jogos do Campeonato Brasileiro.

- O campeão será o Flamengo, Decinho!

- Que nada Renato, o título é do Fluminense.

- Que apostar quanto que o Flamengo ganha? Depois que eles prepararam aquele rapaz, o Zico, o flamengo nunca mais perdeu! Zico é o primeiro jogador do Brasil feito no laboratório.

- Rapaz, eu creio não nesse Zico não!

- Decinho, o mundo está mudando. Você já ouviu falar em tecnologia?

- Eu não!

- Deixa para lá! Pois é, o Flamengo vai ser o Campeão e eu vou acertar os doze pontos.

Na verdade o campeão brasileiro de 1975 foi o Internacional. Nessa época o Internacional se tornou o primeiro clube gaúcho a se tornar campeão do Campeonato Brasileiro de clubes. O Santa Cruz do Recife, também, nessa época, foi o primeiro time nordestino a passar pela primeira fase do Campeonato Brasileiro. A febre se espalhou pelo Nordeste, e chegou à menina Aracaju.

- Decinho o Santa está nas semifinais!

- Rapaz, o nordeste tem gente boa na bola, nós não temos a oportunidade. Dê uma chance aos tabaréus como chamam, dê! Que eu quero ver! Decinho mordeu sem querer a língua e se engasgou quando disse eu quero ver.

- Que foi macho?

- Sei lá. Disseram-me que o campeão será o Internacional de Porto Alegre.

- Eu arriei um ébo na encruza da Pernambuco com a Rua Alagoas. Tem uns crentes morando lá, mas, era tarde ninguém viu. Vou te mostrar que quem ganha é o meu time – o Fluminense.

As plataformas de Petróleo se multiplicavam no litoral sergipano. Gente do sul veio morar na princesinha do nordeste. Sua virgindade estava prestes a sumir. Aracaju começou a crescer e com ela a multidão de gente. Sua população em 85 era apenas 300 mil almas. O Aribé foi urbanizado. As mangueiras sumiram; os manguezais também; a piçarra das ruas e os córregos, outrora abertos, agora estavam urbanizados, não há mais muriçocas no Siqueira. Decinho morreu de hepatite, e seu amigo de prosa, sofreu um enfarto quando assistia ao jogo do Fluminense. Nas ruas do Siqueira uma nova geração apareceu. Eles não conheceram como eram as coisas, nem sabem de onde vem.Nas ruas do Siqueira uma nova geração apareceu. Eles não conheceram como eram as coisas, nem sabem de onde vem.

- Rapaz, o comando vermelho está em Aracaju.

- E é, cara? Como?

- As pessoas estão deixando as grandes cidades do Sul e preferem morar em cidades como Aracaju.

- É por isso que o pó corre solto na faculdade. A coisa agora está democratizada. Todo mundo tem acesso!

- Tem pó até na roça!

- Isso é um absurdo!

Absurdo foi a palavra usada por Tomé para descrever sua experiência com as drogas. O rapaz era ex – viciado em cocaína. Sua namorada Emília nunca soube de nada, no entanto, o amor dos dois foi a força que Tomé precisava para dar o salto que deu.

- Mãe!

- Sim, Tomé já está indo para a faculdade?

-É mãe, eu, hum, hum, eu estou namorando uma moça.

- Como é ela?

- É legal. Tomé encerrou a conversa com sua mãe e seguiu de imediato para UFS onde fazia o curso de matemática. Emília, sua namorada, o esperava no portão oeste da mesma.

- Meu amor eu contei a minha mãe sobre a gente!

- Eu também disse para minha mãe que estava namorando.

- E o que foi que ela disse?

- Nada. Ela não disse nada. E a sua?

- Ela quer conhecer você! Sábado, nós teremos uma festa. Será o aniversário de meu irmão caçula.

- Rafael faz anos agora?

- Sim. Nós não íamos fazer nada. A coisa está apertada. Mas, mamãe decidiu fazer a festa de Rafa. Você vem, num é? Ela quer te conhecer. Tomé ficou um pouco nervoso. Mesmo com vinte e um anos, o rapaz tinha uma vida muito marcada por histórias tristes. Aos 14 começou com o cigarro, depois, o álcool, e por último a cocaína. A faculdade é um mundo de oportunidades, todavia, é também um mundo de tentações. Aos 17 anos Tomé entrou nela; aos vinte ainda não concluíra seu curso. O pó branco retardou um pouco o rapaz. Foi a turma do pó que fez com que Tomé se distanciasse de seus sonhos e conquistas. Conhecer Emília foi uma benção de Deus em sua vida.

Emília estava muito feliz com seu namorado. Sua família aceitou sem resistência o namoro.

- O nome dele é Tomé minha filha?

- Sim, minha mãe. Eu gosto tanto dele!

- Mas, não vá arriar os quatro pneus! Você precisa terminar seu curso. Emília fazia pedagogia na mesma faculdade de Tomé. Tomé era o seu primeiro namorado. Um rapaz de índole boa, no entanto, uma sombra o acompanhava.

- Você foi atrás do Tomé?

- Não chefe!

- Você é broco rapaz! Eu quero os meus setecentos paus essa semana. Estou quebrado! Otavio, o traficante, estava muito irritado aqueles dias. Um caminhão de maconha vindo do Sul fora preso com seus condutores pela PF de Sergipe. Na carga estava a cocaína dele.

Emília aceitara o amor pelo rapaz como sendo uma coisa de Deus. Na reunião do movimento carismático ela contou aos irmãos que Senhor “havia contemplado sua serva”. Ela nada queria saber do passado do rapaz, e nem Tomé tinha interesse de contar-lhe sobre sua vida pregressa. Assim, os dois caminhavam rumo à felicidade. Eles se encontravam na Praça do Siqueira quase toda noite. Emília morava na Rua Pernambuco, e Tomé, na Rua Rio Grande do Sul. Os filhos do Aribé são pessoas simples; pessoas de classe média baixa ou um pouquinho mais elevada. Naqueles anos noventa, o Aribé sofreu profundas transformações. A urbanização recente, o crescimento do comércio e da cidade trouxe mais gente para o bairro. O Siqueira se tornou em um grande centro comercial de Aracaju, quiçá, o mais importante depois do calçadão do centro. O comércio do Siqueira mobiliza milhões em Sergipe. No Siqueira existem ruas que só vendem produtos automotivos, outras ruas só têm clínicas. O comércio do Siqueira é diversificado. O bairro conta com dois grandes supermercados, padarias, lojas de confecções, agências bancárias, postos de saúde, delegacia, escolas, cursos variados, médicos e hospitais. O bairro tem fácil acesso a todas as regiões da cidade. O Siqueira é passagem de quem chega e de quem sai de Aracaju. Foi nesse lugar tão heterogêneo e diverso, que Tomé e Emília se encontraram e se amaram.

- Meu amor eu sinto que nós dois vamos ser muito felizes.

- Sei não. Eu acho que não mereço você.

- Por que Tomé você é gente tão boa.

- Emília eu, eu...

O ônibus chegou e os dois entraram. Durante a viagem da faculdade até o Siqueira o lindo casal do Aribé apenas fez companhia ao outro. A conversa foi interrompida. Tomé desceu primeiro, depois, foi Emília. O moço seguiu estrada a pé até a Praça do Siqueira. Lá ele se encontra com o negão – o cobrador do traficante. “Rapaz, eu sei que você parou, mas, o homem quer a grana”. “Rapaz sexta eu entrego a ele”. O Negão montou em sua bicicleta de marchas e saiu sem olhar para trás.

O Aribé criou suas cobras. Como em qualquer cidade do mundo, Aracaju tem seus monstros e suas alucinações. De noite o Siqueira se torna um lugar sinistro. Muita gente transita por suas ruas e avenidas como zumbis urbanos. Tomé era um desses até conhecer a pombinha da Emília.

- Meu amor; ontem, sonhei que você era um anjo, e que eu era anjo também.

- E tem anjo mulher?

- Num sei, mas, eu estava lá. A quinta feira passou rápido e do mesmo jeito a sexta.

- Tomé teve um rapaz a tua procura.

- Era um moreno forte.

- Sim, era. O que ele quer com você Tomé?

- Nada mãe. Eu depois acerto. Tomé tinha o dinheiro, contudo, procurava um jeito para não ser visto com essas pessoas.

O sábado prometia muito para os dois. Logo cedo Emília convida o namorado para passar o dia com a família dela. Todo muito gostou de Tomé. O rapaz se deu tão bem com o povo de sua pequena que se sentiu em casa desde o primeiro instante. O mesmo sentia a família dela. Todos viam que Tomé prometia muito na vida. O rapaz tinha um futuro seguro. Estudava e trabalhava. O mesmo fazia Emília.

- Tomé você quer ser o que quando terminar o curso?

- Rapaz, eu quero ser professor mesmo! Vou fazer mestrado e esperar um concurso federal.

- É, vá nessa que você consegue! Disse Jeová, o tio de Emília. A noite chegou ligeiro. As pessoas colocaram as mesas e cadeiras na calçada e ficaram ali bebendo e proseando. Esse é um costume muito comum em Aracaju, principalmente, nas classes média e baixa, acredito que na fronteira entre elas. Por volta das sete deu um rápido chuvisco. Havia poucas pessoas na Rua Pernambuco o que era raro. A Pernambuco é uma rua que as pessoas gostam de usar. Tomé e Emília estão à porta de casa junto com outras quinze pessoas. Uma moto escura com dois rapazes passa e buzina para o grupo. Não foram reconhecidos, pois, usavam capacetes, no entanto, em Aracaju, se a pessoa falou, os outros respondem por educação. A festa continua. Tomé chama Emília para um lugar reservado defronte ao muro da propriedade, e inicia uma conversa com ela.

- Meu amor eu preciso te contar uma coisa. Acho que depois que vi o quanto sou respeitado aqui. Preciso andar na luz com todos.

- O que foi Tomé de tão sério assim? Perguntou Emília segurando um lenço na mão esquerda na altura de seu nariz que corizava.

- Eu, eu tive um problema, e ainda estou lutando contra ele. Acho que não volto mais. Emília levanta a cabeça para olhar seu amor nos olhos e dizer-lhe que isso não faria diferença. Todavia, a moça não viu o rosto do seu amor. O farol de uma moto ofusca seus olhos. A moto vem lentamente na direção dos dois. Ouve-se um disparo que joga Tomé contra a parede, depois o segundo proferido contra a moça que cai ao lado do seu amor. Seu corpo treme ao lado do corpo trêmulo de seu namorado. Mais um tiro, mais outro, e mais dois tiros na cabeça de ambos. A moto some como uma flecha atirada ao tempo. A festa acabou. As pessoas saíram de casa. Elas falaram a semana toda sobre o casal que morreu na Pernambuco. Cada um tinha uma teoria. Cada um disse alguma coisa... Eu estava no sofá da sala de estar de minha casa, no cruzamento da Pernambuco com alagoas. Eu vi quando o casal correu na direção da leste. Ela deixou seu lenço cair quando passou por mim. Ele olhou em meus olhos de uma forma como que duvidasse do mundo. E eu continuei sentado vendo o mundo passar...

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 16/06/2012
Reeditado em 30/03/2016
Código do texto: T3728094
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