Cara Coroa

Existe um ditado popular que diz assim: quem vê cara, não vê coração. Não é à toa que as pessoas falam isso. De fato, esse discurso não surgiu do nada. Creio eu que tenha brotado das experiências quotidianas, das interações sociais, derivado de observações atentas do comportamento humano. O homem é um bicho complexo, dinâmico, incompleto, imprevisível, etc. São tantos adjetivos para caracterizá-lo que eu ficaria a tarde toda aqui, sentado, escrevendo. Mas não quero ficar aqui, sentado, escrevendo a tarde toda. Quero apenas contar um pequeno relato que me veio à mente neste exato momento. Acho que isso aconteceu por volta de 1880, já faz muito tempo, pois hoje estou com 95 anos e naquele tempo tinha apenas 15 anos de idade. Era um tempo bom, mas me faltava experiência. Engraçado, não é? Como a vida é engraçada e estranha. Hoje tenho experiência, mas me falta juventude. Quem entende esse negócio de vida? Será que alguém consegue explicar a imprevisibilidade desse negócio? Mas está bom, vou deixar de divagar e ir direto ao assunto. Naquele tempo existia um senhor muito rico, dono de uma grande fazenda de café. Ele possuía muitos escravos. Esse homem se chamava Jodrião. Era um sujeito esperto, generoso, bom para os negócios e todo mundo, por incrível que pareça até mesmo os escravos, lhe tinha grande admiração e afeição. Ele vivia em uma fazenda chamada Poço da Égua Preta, em um estado pequeno do Nordeste. Naquele tempo cogitava-se a questão da abolição da escravatura e Jodrião, sempre fazendo o bem, resolveu dar o primeiro passo e servir de exemplo para os outros fazendeiros, donos de escravos. Deu alforria aos seus cem negros e negras. Desses, mais da metade não queria ir embora. Jodrião os contratou com um salário digno, que lhes garantia viver decentemente. Além do mais, deu a esses trabalhadores um pedaço de terra para morar. Isso é que distinguia aquele homem dos outros senhores de terra: sua generosidade e empatia. Como alguém generoso, é claro, gostava muito de ajudar os doentes. Um dia, caminhando pela rua dos coqueiros miúdos, numa manhã ensolarada e alegre, viu um homem caído no chão apresentando sinais de perfuração no tórax. Pelo visto algum criminoso o havia ferido com um objeto perfurante para lhe roubar algo. Jodrião o acolheu em seus braços, ajudou o infeliz a se levantar e, a passos lentos, foram caminhando até chegar ao pequeno centro de atendimento da cidadezinha de apenas três mil habitantes. Chegando ao hospital, ficou próximo ao doente, observando-o e contemplando-o serenamente enquanto os seus ferimentos eram tratados e suturados. Depois de deixar o enfermo em boas condições, o homem todo feliz voltou para a sua fazenda que ficava a uns vinte minutos de caminhada. Apesar de possuir muitos cavalos, éguas, mulas e jumentos, Jodrião gostava de caminhar. Chegando à fazenda, cumprimentou os seus trabalhadores. Havia ali mais ou menos quinze homens robustos, cuidando da plantação de café. Conversaram por volta de mais ou menos meia hora. Depois Jodrião adentrou em sua casa, tirou as botas, a camisa e se esticou na cama, dormiu a tarde toda. Já no pé da noite, quando acordou, acendeu o candeeiro e viu que a mesa já estava posta. Sentou-se e comeu à vontade. Uma coisa que não faltava em sua casa era muita comida, das mais variadas e das boas. Em seguida, sentou-se no canapé e pensou em seus negócios. Mas, como era homem astuto por natureza, viu em suas elucubrações que tudo lhe ia bem, o recurso que tinha dava para viver o resto da vida com tranquilidade. De repente, pensou em seus animais de estimação que ficavam logo abaixo, no imenso porão. Quem seria a vítima dessa vez? Um coelho? Uma ratazana? Um lagarto? Aquela noite era a vez da mísera ratazana. Pegou o bicho pelas pernas trazeiras, atravessou-lhe o coração com um chucho, pendurando o desgraçado pela calda em uma das hastes de ferro que havia ali, contíguas às pequenas jaulas. Ficou ao lado do bicho, sem piscar os olhos, contemplando-o serenamente, vendo-o retorcer de dor até o último suspiro. Levou quinze minutos para o animal desfalecer de vez. Vendo que lhe faltava o alento de vida, Jodrião desamarrou o cadáver ainda morno e o lançou ao seu grande gato malhado que, de uma só bocada, devorou o infeliz.