Jóia

Passo creme na perna. Tenho pernas bonitas. Não há do que queixar.

Outra pincelada de batom. Bem forte.

Gosto da mini-saia, deixa o bumbum enorme. Ai, que baixaria...

Pego a bolsa de alça rosa, verifico tudo. Camisinhas... preciso delas. Abro a gaveta, pego-as, coloco na bolsa. Tudo certo.

Tranco a porta. A filha do ginecologista no corredor. Veio visitar o pai. Passo por ela.

- Oi, querida.

- Oi.

Ouço abrir a porta. Fecha.

Desço a escada. Dou de cara com a dona do hotel. Quero ser invisível...

- O prazo encerra hoje, garota. Se não terei que tomar medidas bem sérias!

- De hoje não passa, senhora.

O aluguel, tenho que receber o restante ou serei despejada...

A dona olha com indiferença. O cabelo longo grisalho, jeito esnobe de segurar com a ponta do dedo o cigarro.

- Sem enrolar, menina!

Saio. Entro no ônibus. Para o centro da cidade.

Estou no hotel seis meses. Morava com a prima, antes com a minha tia, mas ela descobriu o que faço e me expulsou. Mudei na prima, porém fiquei com receio que fosse descobrir e mudei. Minha mãe e meu pai estão distantes, Piracicaba. Longe de São José dos Campos.

Seis meses. Paguei o quinto, atrasei o sexto. A dona cobrando. Hoje consigo juntar o restante.

Desço. A avenida movimentada. Dezenove horas. Donas na calçada.

Verifico a bolsa. Cisma. Sempre penso que esqueci algo.

O segurança da boate faz um olá. Entro. Dou olá as meninas e para o chefe. Entro no toalete. Olho meu estado. Bonita. Trinta e oito anos e bonita. Papai também dizia...

“Linda filha a minha, não acha?” Comentava para o Seu Chico dono do bar.

“Os olhos dela... pura beleza!”

Adorava o seu modo de elogiar. Sentia orgulhosa.

Sou bela. Meus olhos duas esferas lindas!

Tenho cliente esperando. O advogado. Nem sei seu nome. Cliente antigo. Paga bem.

Levo no quarto. Não preciso tirar a roupa. Coloco CD de tango. Adora tango. Gardel, adora Gardel.

- Me ouve?

Respondo que sim.

- As leis precisam ser rígidas, qualquer inflação será executada com punição. Compreende?

- Sim, entendo.

- Não devemos vacilar. Punição para os que são fora da lei. Severas punições. Abaixa um pouco o som.

Abaixo.

Nunca imaginei meia hora tão longa. Pagou.

Vou ao bar. Peço bebida. Vodka. Desconta na conta, pago amanhã. Hoje é para o aluguel.

Chega o garotão. Dezenove anos. Paga pra ganhar conselhos. Leva-o. Coloco Cd de blues. Melancólico.

Meus pais nem desconfiam. Seria demais para seus corações. Minha tia sabe. Pedi, implorei pra não revelar.

“Devia ficar na casa da sua tia, menina!”

“Mãe, na casa da Cátia é melhor. A tia não gosta de barulho e eu chego tarde da noite.”

“Que negócio é esse de voltar tarde da noite?”

“É o serviço, mãe.”

“Trate de arrumar um de dia, menina!”

“Tá, mãe,”

Meus pais, sem condições. Ajudo-os enviando a quantia que consigo juntar. Não é muito, mas alivia. Papai vende doces, não dá uma boa renda, ama o que faz. Mamãe costura para os vizinhos.

O garoto deita do meu lado. Cruza os braços.

- Ela é linda, gatinha. Acho que não se interessa por mim...

- Talvez seja impressão sua. – Comento.

- Não sei... ela dá mais bola pro Fabinho.

- Brigue por ela.

- Será que devo?

- Clara que deve, amor.

O CD termina.

Tem mais música desse estilo? – Ele pergunta.

- Tenho.

Coloco. Mais melancólico que o outro.

- Adoro o som. Vem da alma.

- Também acho.

Uma hora de conselhos. O menino vai contente. Prefere a mim do que o especialista. Cobro menos do que no consultório. Dá-me um beijo tímido no rosto.

Olho no espelho, penteio o cabelo. Lindos e lisos. Dádiva de meus pais. Calculo o que consegui. Falta pouco.

“Vai pra onde?”

“São José dos Campos, mãe.”

“Aqui tem emprego, menina e bastante.”

“Lá consegui um melhor. A Melissa mora há dois anos. Viu a casa dos pais dela? Ela que ajudou.”

“Linda a nossa filha, né mulher?”

“Sim, meu marido.”

Batem na porta. Avisam que há um cliente.

É o Sr. Rocivaldo. Viúvo. Perdeu há esposa há dois anos. Desde então, visita a boate. Gosta da minha presença.

Faço deitar. Tiro seu sapato. Ponho o CD do Chico Buarque.

Ele fala:

- Levei flores. Limpei a foto, retirei as flores velhas, dei brilho no lugar.

- Que bom, Sr.Rocivaldo.

- Ela merece.

- Sem duvida.

Vai ao cemitério as sextas-feiras. Não esqueceu a esposa. Não sei por que me procura. Acha-me bonita. Papai tinha a mesma opinião.

“Filhinha bonita do papai!”

Orgulhoso meu pai.

“E os olhos, lindos não?”

É papai, lindos e raríssimos como costuma elogiar.

- Sexta-feira que vem pintarei o tumulo. Sabe qual cor devo utilizar?

- Sei não, Sr.Rocivaldo. Garanto que até lá encontrará a cor escolhida.

Saiu antes do horário. Deixou o dinheiro. Conto o que ganhei até agora. Outro programa e tudo se acerta.

Entra o ultimo. Um cara, meio maluco. Me chama de bela. Bela.

- Ah, adoro você, Bela. Bela. Somente Bela.

CD dos Beatles.

- Beatles? Gosto deles. Gosto do George Harrison.

Traz cigarros, compra uísque. Bebe. Fica bêbado. É gentil, cavalheiro.

- Ah, que linda... minha Bela!

Embriagado, olhos vermelhos admirados.

- Daria as estrelas. Roubaria as estrelas pra ti.

- Duvido. - Digo.

- Dúvida? Irei lá em cima e trago. Prometo.

Rio. Maluquice de bêbado. É um amor.

A dona do hotel baterá na porta. Sempre faz. Pra provocar. Acredita que entrarei no joguinho dela. Eu que baterei na porta. Ficará furiosa. Sei provocar.

- Ei, bela, tem nome. Tem nome, linda? Puxa vida! Esses olhos verdes... fortes, perolas vivas. Tem nome, amor?

- Jóia.

Foi meu pai que batizou.

“Veja os olhos. Belíssimos, não são?”

Pelo motivo deles, recebi o nome.

O cara encara, examina com visão embriagada.

- Jóia? – Deita. – Prefiro Bela. Somente Bela, minha Bela...

Troco o CD.

A noite era longa pra acabar...

Rodrigo Arcadia
Enviado por Rodrigo Arcadia em 26/06/2012
Código do texto: T3745547
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