Entre o ar e o mar

Ela estava irredutível; desejava viajar para a Europa, mas não de avião; queria ir de navio.

-Não dá, demora muito, além de ser mais cansativo – argumentou, o marido.

Mas Tânia não se convencera. Segundo, dizia, tinha pavor de avião, se expressando melhor, era pavor de altura mesmo.

-Quero ir de navio – ela retrucou, sem gaguejar – é mais tranqüilo e mais romântico, Márcio.

-Tranqüilo é o que não é! Você já esteve em alto mar, querida? – ela balançou a cabeça. – Então, dá mais enjôo do que gravidez.

-E por acaso você, Márcio, já ficou grávido alguma vez?– considerou, Tânia, irônica.

-Não. – respondeu ele.

-Então, como pode dizer isto?

-Eu nunca engravidei, Tânia. Mas que pergunta sem nexo. Mas já fiz pelo menos duas viagens a bordo de um navio.

-Claro que sim – concordou com o marido -, só que foi num cargueiro.

Aquele diálogo familiar e descontraído continuou até altas horas da noite.

A viagem pela Europa, seria como uma segunda lua-de-mel do casal. Os filhos já estavam crescidos, e os cônjuges podiam comemorar as bodas de ouro sem se preocuparem demasiadamente com os rebentos.

Mas o fato é que os dois, Tânia e Márcio não conseguiam chegar a um acordo.

-Você assistiu ao Titanic, querida?

-O que é que tem?

-Se você analisar bem, não é tão seguro assim viajar de transatlântico – arriscou, Márcio, olhando-a por sobre os óculos.

-É mais seguro do que avião – respondeu ela.

-Mas avião não afunda, Tânia!

-Entretanto, cai no mar, querido!

-E caindo no mar ou no oceano que seja, não mata do mesmo jeito que um navio em naufrágio? – insistiu Márcio, impaciente.

Por mais de um mês o casal passou discutindo sobre a melhor forma de viajar, para aproveitar as suas merecidas férias e reviver as núpcias.

Márcio, empresário bem sucedido na vida e realizado no casamento gostava de fazer seus passeios de avião, que de vez em quando saia com alguns amigos que tinham uma pequena aeronave, para visitarem suas fazendas. Ele se sentia como um pássaro livre, quando estava a bordo de um avião. Adorava ver a paisagem lá de cima.

Tânia, entretanto, tinha verdadeiro pavor de altura, por este motivo nunca saiu do Brasil, exceto uma vez que foi com Márcio para Buenos Aires, na Argentina, de carro.

A empresa de importação e exportação de Márcio lhe permitia que vivesse constantemente na ponte aérea entre o Brasil e outros países. Estava acostumado a viajar no ar.

A data prevista para a viagem estava próxima. Depois de resolver alguns pormenores na empresa, Márcio já estaria pronto para reservar as passagens. Mas as passagens de avião ou de transatlântico?

O casal se encontrava num impasse e o que deveria ser uma antecipação, com vistas a uma feliz segunda núpcias de muito amor e romantismo, estava se transformando em dias de discussões improdutivas. Se em matéria de discussão poderá haver produtividade na conversa!

-Querida – falou Márcio -, precisamos chegar a um consenso, temos de fazer o quanto antes à reserva das passagens!

-Eu já decidi, Márcio.

-Ah, que bom! E qual foi a sua decisão? Iremos de avião, não é mesmo?

Tânia folheava descontraída uma revista sobre turismo, sonhando com a viagem à Europa, a sós com o marido. Demonstrava estar mais calma e compreensiva e, com um grande esforço, parecia já estar na posse de certa coragem que até então não tinha.

-Resolvi! Após uma conversa que tive com algumas amigas e depois com meu irmão, que você sabe, é psicólogo, fazer sua vontade, ou seja, viajar de avião.

-Ufa! - respirou Márcio aliviado – Diga quem foram essas suas amigas, com quem conversou que eu mandarei um presente para cada uma delas. E ao Fred, seu irmão, um consultório novo, moderninho.

-Não ironiza, Márcio. Além do mais pensei muito no que você me disse: que tanto um avião pode cair quanto um navio naufragar, você está certo. Já está na hora de perder este medo. Sabe, deixar de lado esta cisma!

-Ótimo, Tânia, então eu já posso reservar os bilhetes?

-Sim, com certeza – respondeu Tânia, decidida.

Duas semanas depois o casal embarcava num avião ruma à Europa para as merecidas férias.

Tânia bem que tentava, mas não conseguia disfarçar o nervosismo, a tenção. Ela que não era ingerir bebida alcoólica, logo nos primeiros dez minutos em que a aeronave levantou voou, pediu à comissária de bordo que lhe servisse um drinque.

-Nervosa, querida? – perguntou Márcio, procurando quebrar o silêncio que se fez entre ambos naquele momento.

-Imagine! É impressão sua. – tornou ela irônica.

Ou seria ele que a estava ironizando?

Depois de horas de vôo o comandante anunciou que fariam a primeira escala. Foi um alívio para Tânia, que por sua vez, já havia ido ao toalete quatro vezes, por causa dos enjôos.

-Também pudera, querida, você se encheu de uísque durante a primeira parte da viagem, só poderia ficar neste estado. – ressaltou Márcio observando a palidez da esposa.

A essas alturas Tânia já se encontrava de pileque, não completamente, mas não conseguia andar sozinha, sem que tropeçasse nos próprios pés.

Terminada a escala, o avião levantou vôo novamente e, foi inevitável o vômito de Tânia, que rapidamente apanhou um saquinho, deixando dentro dele todo álcool que havia ingerido.

Nem deu tempo de se dirigir ao toalete. Para sua sorte e do marido, ainda bem que existem estes saquinhos ao alcance das mãos, a bordo dos aviões.

De pálida agora que tornou a ficar por causa do vômito, Tânia ao mesmo tempo rubrou de vergonha. Uma das comissárias veio em seu auxílio, ajudando-a a ir lavar-se.

Aqueles que já estavam acostumados a viajar de avião não se importaram com a cena, não houve estranheza, pois a viram várias vezes se repetir.

De volta a sua poltrona Tânia tomou um remédio sem contra-indicação ministrado pela comissária, próprio para estas situações.

Ela dormiu durante o resto da viagem, vindo a acordar poucos minutos antes da aterrissagem em solo europeu.

Tânia desceu calada do avião. Não conseguia nem olhar para as pessoas. Tomaram um táxi e se dirigiram para o hotel que haviam feito reserva. Depois de se registrarem, o casal subiu para o nono andar, na suíte que dava de frente para a avenida principal.

-Bela vista, não acha, querida? – disse Márcio, empolgado.

-Muito bonita, Márcio! Mas quero lhe dizer desde já que não volto ao Brasil sem ser de navio. Portanto, meu bem, trate de trocar ou comprar passagens para vigem marítima. Nem que seja de cargueiro, mas de avião eu não viajo mais.

Ele silenciou por instantes, não queria discutir com a esposa, apenas disse:

-Depois nós veremos isso. Agora vamos aproveitar nossa estada na Europa.

As férias do casal fora agradável e proveitosa. Tânia, porém ao aproximar o dia do retorno ao Brasil, ficou nervosa, insegura. Não pretendia voltar de avião. A experiência que tivera, e a vergonha que passou fez com que detestasse ainda mais este tipo de transporte.

Bem que tentou, mas não conseguiu se adaptar a viajar nas alturas. Pensava consigo: "Se toda vez que fosse fazer uma viagem de avião tivesse que ficar de pileque acabaria se tornando uma alcoólatra".

Embora os conselhos do irmão psicólogo e, o incentivo das amigas, Tânia não se sentiu segura, tão pouco à vontade entre as nuvens. Gostava de água, mar, rios por isso viajar de navio era uma das suas paixões. Preferia ver a imensidão do oceano de perto ater de ver as cidades pequeninas, lá do alto, dentro de um avião.

Depois de três semanas curtindo as férias ao lado do maridão, dois dias antes do retorno Tânia conversou seriamente com Márcio, pedindo a ele que trocasse as passagens aéreas pelas marítimas.

-Tânia agora não dá mais, tenho a agenda cheia de compromissos no Rio de Janeiro, preciso chegar na data prevista.

-Desculpa sua, Márcio – retrucou ela -, não se importa comigo, quer fazer as coisas que são convenientes a você. Sabe muito bem que não gostei da nossa vinda de avião, por que insiste nisso? Além do mais com um simples telefonema você poderá transferir a sua agenda para há outra semana.

Tânia deixou a suíte do hotel, chorando. Saiu do elevador às pressas passando pela portaria até alcançar o outro lado da avenida onde tomou um táxi com rumo ignorado.

Desceu do veículo a uns dois quilômetros do hotel e começou a andar distraindo-se com a paisagem local. Ela divagava em pensamento, um tanto quanto frustrada que se encontrava consigo mesma, por sentir medo de altura e, com a indiferença do esposo que parecia não compreender o seu temor neste sentido.

Quando já se sentia mais calma, resolveu voltar e a caminho do hotel foi surpreendida por um temporal que se formou rapidamente, naquela tarde de início de verão europeu.

Correu, tentando se abrigar da chuva torrencial, mas não adiantou, uma vez que já havia se molhado por inteira. Não conseguiu tomar nenhum táxi, pois a avenida ficara toda alagada, tornando-se impossível o tráfico de qualquer veículo.

Com muito custo conseguiu chegar no hotel e foi recebida pelo marido, que preocupado com sua demora e com a maneira como deixara o hotel, esperava-a imaginando onde ela poderia estar na hora daquele dilúvio urbano.

Os dois subiram.

Depois de um banho quente, Tânia fez um lanche leve, enquanto Márcio lia um livro.

À noite foi deitar-se cedo, sentia-se indisposta, quieta, sem ânimo. Acordou no meio da madrugada, febril, trêmula. Márcio desceu até o saguão solicitando a recepcionista algum remédio para a esposa.

Um dos funcionários foi até a cozinha preparar um chá quente para que Márcio levasse a ela, juntamente com um ante gripal.

Tânia tomou sem rodeios. Ao levar o chá até a suíte do casal, o funcionário do hotel levou consigo um termômetro. A esposa de Márcio estava com 39º graus de febre.

O dia amanheceu e a febre já havia baixado, mas não passara de toda. Márcio pediu ao gerente para o instruísse onde ficava o hospital mais próximo, queria levar a esposa ao médico. O gerente providenciou que um dos motoristas do hotel os levasse. Já no hospital, Tânia foi prontamente atendida. Estava um pouco febril ainda e tossia muito.

O médico a examinou, teria de ficar sob observação e para isso, naturalmente precisaria ficar internada. Ela permaneceu internada durante o dia e a noite toda. No dia seguinte as passagens já estavam marcadas para voltarem para casa e, Tânia ainda não recebera alta médica para deixar o hospital.

Márcio conversou com ela; trocaria as passagens, não daria para viajar com a esposa naquele estado, era preciso que se recupere bem.

-Querido – disse ela ao marido – li há poucos dias no jornal que tem um cruzeiro saindo para o Brasil e que ainda há quatro vagas no navio. Tente trocar as passagens, pois é um navio do mesmo grupo da empresa aérea que compramos o pacote.

Ele bem que tentou, porém, não conseguiu.

Logo pela manhã, antes de retornar ao hospital passou no aeroporto na esperança de conseguir dois lugares no cruzeiro. Tudo em vão!

À noite teriam que embarcar para viagem de retorno, nem mesmo conseguira transferir as passagens para outro dia. O que fazer?

Márcio não sabia quando e a que horas o médico poderia liberar sua esposa, que por sinal ainda se encontrava muito abatida, embora a febre houvesse cedido. Tânia estava com broncopneumonia. Ela terminara, não fazia muito tempo de iniciar um tratamento para combater a doença e era necessário que não se expusesse tanto a baixas temperaturas. Com o temporal, o clima virou de uma hora para outra e, ela toda molhada passou a sentir os seus efeitos.

O empresário sentou-se preocupado sem saber o que fazer. Seria quase impossível de conseguir um outro vôo para o Brasil nos próximos dias. Havia um, porém, mesmo que houvesse, Tânia não viajaria de avião, então seria melhor não contrariar a esposa, que já estava um pouco fragilizada.

A atendente da empresa aérea que o atendera, vendo-o sentado e desalentado, fez sinal para que fosse até o balcão novamente.

-Senhor – disse ela – me desculpe, mas vejo que desejaria viajar o quanto antes para o Brasil, não é mesmo?

-Sim – respondeu ele esperançoso.

-Tem um cargueiro com três cabines de passageiros, saindo para o seu país de origem, depois de amanhã. Gostaria de ocupar uma das cabines, isto é, não se importaria em viajar num cargueiro, já que tem urgência em voltar?

-Vai direto ou tem alguma escala? – perguntou.

-Direto, senhor!

-Bem, para quem está com pressa de voltar, de navio não seria mais rápido, ainda mais se tratando de um cargueiro. Mas vou ficar com a cabine. Reserve uma para duas pessoas.

No outro dia Tânia recebera alta.

No porto, para surpresa de Márcio, o cargueiro no qual viajariam, era um dos prestadores de serviço, que atendiam a sua empresa de exportação e importação.

No ar ou no mar, os dois concordavam numa coisa: era muito bom estarem juntos, não importando a situação.

Valdemir Barbosa
Enviado por Valdemir Barbosa em 19/07/2012
Reeditado em 20/07/2012
Código do texto: T3787046
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