Cristina Salta

I

No aeroporto, aguardando a saída dos passageiros, lembrou-se das circunstâncias de sua partida, o porquê de só agora ter tomado uma resolução e passou a imaginar como seria sua vida a partir do desembarque, a nova vida que escolhera para si e todos os problemas a serem enfrentados daquele momento em diante.

Quando saiu do Brasil, por motivos desconhecidos, deixou para trás a família inteira preocupada com seu sumiço. Duas semanas após chegar a Roma, telefonou para a nonna revelando seu paradeiro. A velha, entretanto, siciliana de Palermo, lhe disse palavrões num dialeto impenetrável durante quase toda a conversa. Só restou buscar o consolo de um meio-irmão, padre em Messina, com quem não falava desde os dez anos de idade. Através dele a famiglia enfim soube de Cristina e, passado o susto, uma vez que ela estava viva e bem, logo foi esquecida..

Cristina casou-se com Luca Menotti no fim daquele ano. Luca era livreiro em Città Reggia, e conheceu Cristina durante uma leitura de Goldoni no palco do bar Comuna. Não digo que se apaixonaram tão logo Luca iniciou seu poema (“... donna, chi sa quello che succede in tuo cuore”...), nem quando Berta os apresentou e houve aquele silêncio que prenuncia interesse mútuo; talvez Luca tenha conquistado Cristina simplesmente porque ela precisava ter alguém em quem despejar suas imprecações e ao mesmo tempo alguém em quem pudesse confiar. Tiveram dois filhos em quatro anos de casamento, Ciccio e Lucia. Berta foi madrinha das crianças.

O negócio de Luca era modesto, mas rentável. A família vivia bem. Cristina soube tirar partido dos novos tempos, e criou um dos primeiros sites de compra de livros na Itália, o Lettera Nuova. Gente de todo o país passou a encomendar livros novos e usados com os Menotti; era comum virem pedidos da Suíça, Áustria e norte da França. As crianças cresciam lendo Collodi e De Amicis. Luca era fã de Calvino, Moravia, Pappini. Mas Cristina buscava alento em Jorge Amado e nas novelas brasileiras exibidas pela RAI.

O orgulho a impedia de visitar a família. Era um bom pretexto para voltar ao Brasil, ainda mais agora que tinham melhorado de vida. Luca era um bom homem, mas carecia de personalidade, o que Cristina esbanjava. A paixão pela mulher garantia a ela invariavelmente a última palavra, cujos decibéis sempre vinham acima do desejado. Era homem calmo, simpático, de uma gordura distribuída com capricho pelo corpo pálido e de uma calvície calculada que não o aborrecia. O temperamento afável, costumava dizer, foi cultivado graças ao sangue quente da mulher. Quando brigavam, Luca ia para a “sala de triagem”, onde separava os exemplares mais interessantes para si, e ouvindo Verdi (“Oh Me! Morir Mi Sento”) esperava o pavio da esposa queimar por inteiro; ela trancava-se no escritório para esconder-se na internet ao som de Bethânia ou alguma diva americana. Como num balé previsível, faziam as pazes durante o café da manhã do dia seguinte, abraçavam-se e, sem retomar a discussão que levara à briga – ou ao monólogo irado de Cristina –, ela falava sobre a viagem ao Brasil e de como seria bom que todos conhecessem sua família italiana. Luca não queria ver a esposa infeliz; dizia vagamente concordar com a idéia, mas não punha fé na acolhida dos sogros brasileiros. A simples lembrança dos impropérios da madonna siciliana lhe causava calafrios. E dizia à Cristina “oh, donna, siam re di morte”...

O inverno trouxe à porta da família Menotti más notícias. Seu Geraldo falecera e ninguém ousara avisar o dia do enterro. Fabrizio, de um telefone público, retornando do Brasil, foi quem contou à Cristina que o pai estava morto. Três dias se passaram sem que Luca ouvisse a voz da esposa. Berta tomou conta das crianças nesse ínterim de luto. À noite discernia-se pelas paredes finas do escritório um choro manso que aumentava de intensidade até rebentar em soluços intermitentes. A dor da mulher e a solidão imposta pela morte do sogro foram decisivas para Luca apoiar o tardio retorno de Cristina. Pesquisou, antes de consultá-la, agências de viagem, diárias de hotel e contactou alguns amigos brasileiros da internet para fazerem companhia a ela enquanto estivesse por lá. A mulher há tempos falava de implementar os recursos e a filosofia da Lettera Nuova em algum negócio envolvendo autores sulamericanos fora de circulação, edições esgotadas de obras publicadas nos anos de ditadura, e consultas on-line a acervos especializados. Era preciso estar lá para acertar os preparativos, buscar patrocínios, pesquisar preços de hospedagem, conversar com agências de entregas, reunir colaboradores. Foram estes os planos traçados por Cristina já há tempos, e com um empurrãozinho de Luca ela em breve faria a viagem de volta ao lar.

Luca não entendeu a reação da mulher ao receber as passagens. As malas, preciso fazer as malas. Ciccio não dorme sem aquela lâmpada vermelha acesa, você sabe. Será que encontro Berta em casa? Ela falava sozinha perambulando pelos cômodos, Luca a seguia e ouvia em silêncio. Ficaria longe da mulher até a Lettera Nuova arranjar-se pelo Rio de Janeiro. Ela deu a idéia de alugar um sobrado no centro da cidade para um café literário, com microcomputadores de segunda mão acessando o conteúdo preparado exclusivamente para os clientes, com bancos de dados repletos de artigos, resenhas, livros eletrônicos e tudo o mais relacionado à literatura. Minha agenda, você viu? Precisamos avisar ao Beppe também, ele tem uns amigos morando em São Cristóvão que podem arrumar um lugar para mim, não dá pra ficar a vida toda em hotel. Luca concordava com meneios discretos, invisíveis, Cristina absorta com o Brasil.

Luca não fez amor com a mulher na véspera de sua partida. Ela manteve-se acordada, fingindo reler Il gattopardo até bem tarde, na esperança de ser embalada por um leve orgasmo. Luca fingiu dormir, puxando o cobertor até o queixo e respirando pausadamente, o corpo subindo e descendo com cadência sob as grossas colchas que usavam naquele inverno terrível em Città Reggia. Na manhã seguinte, sem acordar as crianças, Cristina voltou para casa, sem um beijo mais amoroso do marido, e sem se importar muito com isso. No Santos Dumont, Vieira recebeu-a com festa, e disse-lhe para ficar tranquila pois tinham ar-condicionado. Apesar do sono, admirou os ambulantes na feira de antiguidades na Praça XV, as crianças se refrescando no chafariz da Candelária, os preparativos para mais um ensaio técnico de uma escola de samba na Apoteose, o sol de fevereiro sugerindo praia e uma cerveja bem gelada. Beppe me disse que seu laptop está com problemas, quando a gente chegar deixa eu dar uma olhada, sorriu Vieira, sorriu Cristina, admirando as palmeiras espalhadas pelas ruas de São Cristóvão.

II

Como muitos outros detalhes dessa estória, só se pode imaginar alguns possíveis diálogos conhecendo bem os personagens. Já se sabe quem é Cristina; acredita-se que o gordo Vieira seja apenas um figurante simpático, com sua barba por fazer, as roupas listradas a salientar a barriga, a barba bem escanhoada e o sorriso mole de malandro carioca; Luca permanecerá sozinho, cuidando de Ciccio e Lucia, enquanto procura um exemplar de Langston Hughes perdido na prateleira de livros bilingues, afastando de si a lembrança da mulher abatida que ele deixou no aeroporto. Sabe-se, porém, que nesta estória, caso ela venha a ser contada por inteiro novamente, todos os diálogos são possíveis, todos os personagens devem se mostrar a seu momento, e por certo você terá tempo para especular sobre uma lacuna ou outra deixada em branco de propósito; sabe-se também que uma estória nunca é a mesma quando confrontada com experiências próprias ou quando relatada outras vezes, sempre com ligeiras alterações. Ao ouvir pela primeira vez a estória de Cristina, ela se chamava Maristela e eu costumava fechar bares. Imaginei muitas conversas envolvendo Cristina, e talvez nenhuma delas tenha soado tão falsa quanto a que teve com Pedro Antunes na Casa do Livro. Ela procurava a dona do sebo, ele procurava Rogério Batista em edições esgotadas, e houve um encontro cercado de mentiras. Você por aqui, Maristela, perguntou à Cristina, que respondeu ué, foi você quem sumiu. Lembra de mim, André? Claro, mentiu, gostava de conversa à-toa. Tomaram chope perto de um puteiro onde as putas flanavam à luz do dia, rindo até para a guarda municipal, e comeram pastéis de camarão pingando gordura, e fumaram cigarros sem filtro, assistindo o burburinho na saída do João Caetano. Pena o Real Gabinete já ter fechado, eu te levava pra conhecer. Mas já fomos lá, não se lembra, André? Ele concordou, pois é, mas faz muito tempo. Vamos no Teles tomar uma caipirinha?

Descartei esse encontro quando contei esta estória semana passada. Pareceu trivial demais, e creio não ser tão fácil se aproximar de Cristina. Ela havia perdido o pai há pouco, o casamento já não era uma aventura pela qual atravessaria continentes, e o Brasil tinha mais problemas do que conseguia se lembrar morando tantos anos na Itália. Os italianos têm seus defeitos, mas olhando de fora, como fazia Cristina perdida no Rio, era um país tão perfeito e nós, brasileiros, tão inferiores, tão mal-agradecidos. Nós temos um mar lindo, somos tão simpáticos, não há frio contra o qual se proteger ferozmente, há mais dias belos do que tristes, e aqui gostamos de conversar na fila do pão, logo de manhã, ouvindo as notícias do futebol num radinho a pilha. Escondida em Città Reggia são estas as lembranças invocadas por Cristina, mas um mendigo defecando num canteiro perto da garagem do seu prédio em São Cristóvão faz do Brasil um cantão selvagem perdido entre inóspitas paragens latinas, oprimido por governantes corruptos que exportam bundas e arrotam caviar paraguaio.

Penso no encontro entre Cristina e Pedro Antunes. Luca telefonava todos os dias, mais por diligência com o novo empreendimento. Cristina teve dificuldades em associar-se aos livreiros, mas graças aos contatos de Vieira o negócio em breve decolaria. Foram precisos três meses até que se cogitasse enfim alugar um loja na 1º. de Março. Pedro de fato procurava Gato escaldado em balde de sangue, um quase-cordel de Rogério Batista, você tem aí, perguntou. Ela estava ocupada, indicou-lhe a prateleira onde talvez encontrasse o livro. Há um longo parágrafo onde descobrimos como estes dois se aproximaram, mas creio tê-lo perdido, e é aí que devemos começar de vez a especular sobre os papos no Teles – pois lá realmente serviam uma ótima caipirinha –, as ásperas discussões sobre literatura (Pedro Antunes em sua arrogância ignorava a arrogância de Cristina), os repentinos silêncios perscrutados por olhares cada dia mais significativos, o primeiro beijo recendendo a incenso – e o último, embalado pelo álcool (mas sobre isso se deve conjecturar apenas no fim). Resolvi ignorar duas laudas de pormenores, pois agora preciso compensar o tempo gasto com explicações sobre o passado de Cristina e todos os seus planos para o futuro; lá se vai outro extenso parágrafo, onde eu reproduziria parte das conversas entre os dois, passando por cima dos que estão até agora pensando em como seria Pedro Antunes. Pois se, por exemplo, Vieira é gordo, e Cristina, seria ruiva, teria belos seios, algum cacoete, sotaque? Antunes, bigode, pés chatos, colarinho puído? Langston Hughes e Rogério Batista – eles existem? Luca, entretanto, assim como o amigo de Beppe, aparentemente insípido na trama, se materializa por inteiro nesta narrativa. Por quê?

Houve uma noite em que sentaram para ler juntos, apenas ler, e ainda assim prefiro omitir os detalhes, mesmo aqueles responsáveis pelas melhores lembranças de uma bela estória. Apenas isso, o garçom era do norte e Cristina dizia chama o Severino e pede mais uma caipirinha. Antunes respondeu claro, na Itália não tem paraíba. O que você quer dizer com isso, Cristina indignada (se indignava fácil, era mimada). Se o cara fosse preto, você ia chamar ele de quê? Cristina tragou o cigarro e chamou, garçom! Qual seu nome, perguntou, e o sujeito respondeu João. Quando o garçom afastou-se disse viu, Pedro, o nome do Severino é João. Satisfeito? Claro, perdeu-se um longo tempo nesta diatribe, até esquecerem o episódio e voltarem aos livros, e se houve algum beijo flagrado por João, ou se Cristina queimou o braço de Pedro Antunes com cigarro, ou se a chuva os obrigou a tomar mais caipirinhas antes de se despedirem, sobre estes acontecimentos só nos resta supor como terminou a noite, ou novamente ignorar os fatos.

Aconteceu um dia de Cristina retornar à Itália. Vale lembrar o ambicioso projeto de expansão da Lettera Nuova, um empreendimento que tinha tudo para dar certo. Talvez tenha prosperado, mas isso também não vem ao caso, pois Cristina voltaria para casa de qualquer jeito. Ciccio, Lucia, Berta, Luca, o distante Fabrizio. O Brasil e Pedro Antunes teriam de ficar pra trás. Não se tem certeza sobre os eventos ocorridos ao longo de sete ou oito meses; Pedro perdeu o interesse por Rogério Batista e sua obra; Vieira prometeu a Beppe uma visita em breve e iniciou regime depois de quase enfartar; João se chamava mesmo Severino – havia apenas se cansado do estereótipo. Da sua vinda, estada, rotina, do seu trabalho e de sua vida, isso é tudo o que sobrou de concreto da passagem de Cristina pelo Brasil, e o resto virou estória de Maristela e André.

No aeroporto, aguardando a saída dos passageiros, lembrou-se das circunstâncias de sua partida, o porquê de só agora ter tomado uma resolução e passou a imaginar como seria sua vida a partir do desembarque, a nova vida que escolhera para si e todos os problemas a serem enfrentados daquele momento em diante. Beijou Luca, abraçou as crianças, falou hoje vamos comer feijão, trouxe dois quilos. Achei Brás, Bexiga e Barra Funda pra você, amor. O marido apanhou as malas na esteira, Ciccio reclamou da irmã e Berta ligava no celular, ciao, cara, come stai, e Cristina respirou fundo ao ver, pela janela do carro, a caminho de casa, as crianças na praça atirando moedas na fonte.

Marlon Magno
Enviado por Marlon Magno em 14/02/2007
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