Pelos olhos do ouvido

Será que a festa hoje à noite vai ser boa? - Perguntou Maria ao seu marido. Como é que vou saber – respondeu-lhe Gusmão, secamente. Gusmão era um homem que não dava para festas. Sempre falava que melhor era estar em casa, lendo um bom livro, escrevendo ou conversando com amigos a estar metido em festas. Mas como já havia prometido a sua esposa que iriam passar a virada do ano juntos no Clube das Margaridas, não lhe havia como escapar desse compromisso. O relato que apresento ao leitor e à leitora ocorreu no final de 1899, iniciozinho de 1900. Já faz muito tempo por que hoje, se não me falta a memória, estamos no final de 1950, em mais uma festa de fim de ano. Estou em minha casa, rodeado de netos. Neste momento, encontram-se 10 netos, me faltam mais 08, creio que a qualquer momento devem estar chegando. Tenho dezoito netos. Minha família é muito grande e muito alegre. Não há nada melhor que passar a senilidade ao lado de pessoas que nos querem bem. Infelizmente minha mulher faleceu há cinco anos, foi um momento difícil, ainda sinto muito a falta dela. O casal que vos apresento neste pequeno conto já morreu também, isso faz, deixe me ver, quinze anos. Isso mesmo, quinze anos porque hoje me encontro com quase um centenário. Mas bem, voltemos ao casal, porque a minha intenção não é falar de mim, e sim, dos meus grandes amigos que já se foram há muito tempo. O leitor e a leitora me desculpem, porque tenho essas manias de me enfiar no meio de conversas alheias. Sempre tive essas manias, mas agora no finalzinho de minha vida, estou mais atento a isso. Engraçado, já me encontro com quase cem anos e ainda estou me policiando, mas a vida é assim mesmo. Do tempo que eu entendo por gente não encontrei uma pessoa que não tivesse um probleminha aqui e acolá ou uma maniazinha dos diabos. Oxente, me pego novamente falando de mim mesmo, mas gente velha é assim mesmo, vocês hão de entender algum dia se tiverem a sorte de chegar aos 85 e quem sabe, mais próximo dos 100 anos. Bem, eu estava falando do meu amigo Gusmão e de sua esposa, Maria. Não hei de esquecê-los, nunca. Foram um casal muito prestativo e bom. Recordo-me que naquele ano de 1899, Gusmão, por volta das sete da manhã, me veio ao encontro na feira livre e me pediu para acompanhá-los à festa de fim de ano que aconteceria no Clube das Margaridas, às nove da noite. Como não tinha nenhum compromisso, aceitei o convite de imediato. Chegando a casa, encontrei minha mulher torcendo uma ruma de roupa, falei-lhe do convite. Ela gostou muito da notícia. Escolheu um belo vestido dentre os muitos que havia no roupeiro e reservou-o para a esperada festa. Conforme combinado, passei na casa de meu amigo por volta das oito, em meu tílburi. Não era um tílburi comum com dois assentos apenas, puxado por um garanhão. Aquele possuía seis assentos e era puxado por dois belos cavalos, os meus melhores. Gusmão e Maria tomaram seus assentos e fomos conversando até o local da festa, Rua dos Inquilinos, Bloco B, Bairro das Borboletas. Quando chegamos, encontramos uma mesa já reservada, sentamos. Minha esposa e Maria, como de costume, levantaram para cumprimentar as demais senhoritas. Gusmão e eu ficamos a conversar e a observar o que sucedia ao nosso entorno. Havia ali mais ou menos cinquenta mesas. Estavam presentes pessoas da alta sociedade da pequena cidade do Ingá Velho, interior da Bahia. As mulheres exibiam-se. Cumprimentavam-se por obrigação, sorriam, mas ao dar as costas umas às outras, era visível o rosto de repugnância e insatisfação. Os homens não ficavam para trás. Nas rodas de conversa, tratavam de assuntos intelectuais. Conversavam sobre esse ou aquele assunto. Ninguém queria ser objeto de desdenho. Aqueles que se sentiam diminuídos tentavam compensar a falha falando de suas habilidades para com o galanteio e/ou exibindo números exatos de suas propriedades urbanas e rurais. Às vezes, falavam de filhos que mandavam estudar no exterior, às vezes falavam desse ou daquele amigo que possuía um título de governador, juiz, etc. Os que eram impossibilitados de gerar filhos sentiam-se profundamente amargurados, abjetos e infames; os que não possuíam propriedades rurais e/ou urbanas sentiam-se terrivelmente despeitados. Aqueles que não haviam desenvolvido habilidades para com o galanteio sentiam-se muito envergonhados e, às vezes, mentiam sobre esse ou aquele feito para demonstrar que eram homens capazes. Aqueles que possuíam um bom número de recursos materiais e muitos filhos sentiam-se bem melhor e mais afortunados. Gostavam de falar dessas vantagens para tentar desestruturar e/ou fazer inveja aos mais ingênuos e incautos. Tudo isso não passava despercebido ao meu amigo Gusmão. Ele, sim, a meu ver, era homem astuto e perspicaz. Ao longo de sua vida tinha desenvolvido competência suficiente para entender o comportamento humano e a consequente causa de suas mazelas sociais. Não me esqueço do que Gusmão me disse naquela noite de fim de ano no Clube das Margaridas. Após contemplar todas as pessoas a sua volta conversando, bebendo, sorrindo e dançando (muitas daquelas ações se davam à causa do álcool) aproximou-se ao meu ouvido e sussurrou compassadamente as sílabas: “VAI- DA- DE” - e acrescentou - “esse é o vírus mais letal e macabro que surgiu das interações sociais, evoluiu caoticamente, entrou sorrateiramente e estabeleceu-se nos corpos dos indivíduos, levando-os à ruína psicológica, isolamento, depressão, doenças de diversos tipos e, consequentemente, à morte prematura”. Aquela frase de meu amigo Gusmão fez toda a diferença em minha vida. Ajudou-me a viver melhor. Por isso é que estou conseguindo chegar ao meu centenário que comemoro daqui a dois dias. Infelizmente, Gusmão não está aqui. Naquela noite, no Clube das Margaridas, ao proferir a sentença que iria mudar completamente minha vida, meu amigo já havia sido contaminado pelo vírus letal que acompanha geração após geração em suas interações sociais. Acredito que esse diabo nunca vai parar de evoluir, pois onde encontraria melhor lugar para se instalar, amadurecer e procriar do que na mente humana?