Le Grotte

LE GROTTE

Quando os fantasmas sentaram-se ao lado dela, constatou que as oliveiras eram árvores feias, a paisagem árida e meio fora de propósito, cartas e retratos estavam espalhados pelo chão, pedaços de um tempo moído, era o que pensava de tudo aquilo. A Itália, ela sempre a vira com suas montanhas que o pai dizia ter escalado quando criança, as Dolomites contava com entusiasmo, a imaginação voava sobre uma alta cadeia de montanhas, pessoas esquiando na neve, flores nas campinas, talvez a noviça rebelde cantando junto as crianças de impecáveis aventais, Roma e seu jardim da Villa Borghese, Venezia com le gondole e Fred Astaire, que vira passar no sagüão do hotel, magro e antipático: - O senhor não poderia ir dançando pelas praças, com cara de bonzinho, como fez nos filmes? Agora, o automóvel corria pela estrada sinuosa, ela olhava a paisagem plana e sem apreço, não era a tal Itália do pensamento, dos romanos, Marcus Aurelius, Julius Caesar. Estavam chegando em Castellaneta: - Veja que monumento horrível fizeram para Rodolfo Valentino, seu avô era padrinho dele, ele nasceu aqui, passa por uma figura vestida de árabe em cerâmica de cores dúbias olhando para o nada, recorda-se do ator em documentários, morreu moço e amado em Hollywood, misteriosas mulheres de véus pretos visitavam seu túmulo difícil crer fossem a mesma pessoa. Algumas janelas se fecham à medida que o automóvel percorre as ruas estreitas, roupas em varais no meio de vielas, se sacodem como fantoches coloridos. De quando em quando, vêm-se muros de pedra que acompanham a estrada, algumas construções toscas com cozinha separada por cortinas de fios plásticos em diversas cores, veria mais tarde esse costume em casas do Brasil. Mulheres de meias pretas e lenço na cabeça a espiam com curiosidade desconfiada; nas praças dos vilarejos, homens velhos, alguns com capas escuras, sentam-se em cadeiras formando uma roda suspeita e jogam sobre um tabuleiro; quando o automóvel passa, olham fixamente e um silencio pesado aguarda para confabular, que a máfia anda solta. A tarde vem chegando pelos lados de Taranto Vecchia, o chofer fala pouco, la maquina corre muito e deixa uma poeira fina para trás. Quando chegam em Le Grotte as oliveiras têm um tom prateado e triste e o empregado os espera na frente da casa. A famosa Le Grotte. Havia chegado frente a casa da fazenda das histórias do pai que pouco acreditara, ele gostava de inventar, meio louco, meio artista, completamente irresponsável. No entanto, Le Grotte existia, existia, fruto de uma burguesia rural que o pai tanto desprezara. Existia Le Grotte, existia Scarano, existia San Gemigniano, terras do avô-barão, cujos ancestrais lutaram contra Napoleão, brasão do fim do século dezessete, a história nos livros, era tudo verdade. Le Grotte entrada em anos, muitos anos, séculos, sobre a enorme porta, o brasão da família, um sol gordo, um ramo de oliveira, o peixe, o mar, mare di tempesta, informou o jornalista, indicando ser a família de origem genovesa e de fidalgos pertencentes a marinha. Ela se vira e olha o pai que a contempla com entusiasmo comedido. Como pudera ele ir embora, largar tudo, deixar tudo, desprezar tudo, pisar em tudo, aquela mansão tão grande e o chão de mármore branco e negro, o saguão imenso e os quadros célebres, num deles, o pai, ainda criança, passeia em Veneza; tem um cacho de uvas nas mãos e está junto ao irmão, morto aos dezoito anos. Ela caminha entre os móveis pesados e entristecidos, tapetes enrolados, figuras de argila encontradas em escavações nas fazendas e trancadas em imensos armários de vidro, a tia havia se precavido contra eventuais ambições degli americani, ela era um degli americani, achava engraçado, esquecera o nome do seu continente - Este era o quarto de sua mãe quando ela ficou aqui em 1930, quando nos casamos, as palavras tem um tom informativo tão somente, se alguma dor ou desgosto sente, não deixa transparecer, no aposento imenso, ela vislumbra a sombra da mãe jovem com a irmã mais velha no colo, assustada com um mundo desconhecido, (minha mãe, tímida, deve ter sofrido aqui), a voz do pai, subitamente cansada: - Cândida sofreu aqui, minha mãe era uma mulher perversa, fez a vida de todos amarga, ela toca de leve na colcha de brocado e não responde, nem há mais o que dizer, a quem pedir explicações, dirige-se para a janela que dá para um terraço enorme nos fundos da casa. De lá, vêm-se as oliveiras perfiladas, frutas do pomar, pressente-se que o mar está perto. Dorme no quarto do tio-avô, morto aos dezoito anos, o preferido da avó, bom, gentil e inteligente, um artista, o pai comenta que se parece com ela, Aulus era um bonito nome, não dorme bem no quarto dele, ouve rangidos durante a noite, seria o lamentar de Aulus,- Também eu não quero nada com vocês, só vim por curiosidade, não tenho interesse em ficar aqui, tudo é muito triste, vocês não conseguiram ser felizes nem deixaram meu pai ser feliz no Brasil; melhor dizer que ele não soube ser feliz, nem sei ao certo, ficaram lascas, lascas pontudas, finas, finas, que ele distribuiu pela vida afora, saiam de um chicotinho que ele usava para se bater, bater, que não era o querido da mãe, que a irmã era uma deusa boba, o pai um boneco triste na mão da avó cadeiruda e de expressão indócil. O dia amanhece num azul de aquarelas, ela sente-se cansada, parece ter areia nos olhos, caminha um pouco pelo pátio, um lagarto verde a observa sem pressa. O empregado lhe traz la colazione, signorina, avisa que Don Fabio já está longe, saiu cedinho, medindo as terras, terras que o avô havia deixado. Ela caminha à esmo pela mansão, entra num local que deveria ter sido um escritório, biblioteca, algo assim. São várias as cartas e fotos que encontra, espalhados sem cuidado. Percebe como o pai jamais havia se desvinculado daquele lugar, ficara uma raiz feia e triste que o agarrava pelos pés no Brasil, o trazia de volta constantemente para se redimir, agradar, pedir perdão, para implorar, o que? O que seria esse descaso tão grande de uma mãe por um filho que deixa o país, para ir de encontro a uma terra desconhecida como o Brasil, de um pai ausente e fraco, que se deixou levar por intrigas e conchavos, que diabo de sofrimento haviam imposto à sua mãe, tão jovem, simplória e assustada, la índia, estava escrito nas cartas, estúpidos, quanta falta de critério, sua mãe era tão esperançosa, eles tão ignorantes, país culto hein, uma ova, ela pensa, tantas cartas de um pai jovem e infeliz, tantas fotos de uma tola burguesia italiana, fotos de sua mãe moça e constrangida com a irmã mais velha no colo, fotos de seus primos, ar arrogante e vazio; lembra-se do sonho onde ela se vê em outra - tem uma irmã gêmea - chega-se a ela e é recebida com descaso, há um silencio constrangido no ar – não é bem-vinda, não pertence, não é; e há uma parte sua, tão interna, que não é, que tem medo, que precisa pertencer, precisa ser importante, não poderia ser ela, aquela moça antipática com um vestido rosa de seda, cercada de amigas tão limitadas; no entanto, havia sonhado com a gêmea! Sente a porta da frente bater, o ar é mais fino agora, aos poucos eles vão chegando, sentam-se nas cadeiras empoeiradas, avó Anna, a perversa, a mandona, a prepotente, o avô Vincenzo, reconhece-o de pronto é o pai, só que mais velho, uma fidalguia distante, o pai está mais atrás, expressão serena: - Pai, sê já mediu as terras, podemos ir embora? No parapeito da janela está sentada Anna a prima elegante que dava festas em Cortina, roupas de Paris, dois casamentos absurdos, sua vozinha em falsete, ciau Regina, comme stai, a mãe tem um crochê no colo, uma toalha tão branca e fina, seria renda, vai esvoaçando pelo ar, a olha com certa tristeza: - Deixa tudo isso filha, somos um tempo que passou, somos outros agora - Por acaso estou perturbando vocês mãe, não , não, nem pensar filha, é só que já fomos, olha para a sua vida, minha filha, o futuro, sua fé e seus projetos, nem mais sofremos com as mazelas da vida. – Vieram vocês todos por que? Eu só disse que sonhei com a gêmea, me lamuriei um pouco, o amigo diz que é um conflito interno, chamei por vocês, sem querer, chamei o conflito também; ser eu ou ser a importante, poderosa, rica, elitista, dar festas em Cortina hein Anna, pertencer a um mundo, qualquer mundo, tive que aprender a pertencer à mim mesma, só isso, que já é muito. Todos a olham em silêncio, concordam com um meneio de cabeça

. - De onde é que vocês todos vêm vindo, todo mundo chegou na mesma hora!! - Não posso explicar mais do que isso. - Um dia, é verdade que estaremos todos juntos mãe, todo mundo fala isso, ela sorri e não responde, são as coisas que estão além do além, tem um muro alto filha, alto demais, a gente não consegue pular, não consegue, ela se volta e vê o pai meio que sorrindo, não há como saber, ele fala baixo, você tem que viver com o desconhecido, tem que ter fé no desconhecido, tem que ter fé na sua dignidade, na sua ética e tem que ser o seu conceito filha, de mais ninguém; os avós italianos a olham com surpresa, os avós brasileiros estão sentados juntos de mãos dadas e sorriem, Anna, o que aconteceu com você, tão bonita, ela se volta e coloca a mão na cintura, non fare comme me cara mia, non fare comme me, desaparece no jardim o vestido de cassa creme que esvoaça no ar frio; a tia, essa não levanta os olhos, parece sofrer, não diz nada, sai mansamente, non voglio vedere nessuno, nessuno.. Os avós deixam a sala em silêncio calmo, olha os pais que se levantam e passam a mão por sobre sua cabeça, tão leve, tão leve, vocês já vão, nem me falaram nada, não parecem mais ouvi-la, passos de nuvem, acenam e somem no pomar e a moça de tailheur azul avisa que, no sudeste, teremos pancadas esparsas, Elis Regina sorri esperta no vídeo, as águas de março fechando o verão... promessa de vida no seu coração.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 10/09/2012
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