Tem que ir buscaro perú, Alfredo

v Tem que ir buscar o peru, Alfredo

-Tem que ir buscar o peru Alfredo, vê se faz alguma coisa não está vendo que eu estou ocupada, ele se levanta meio zonzo, o vinho é forte tem que dizer vinho encorpado que fica parecendo conhecedor, Roberto Carlos vai ficando mais nítido na tela; caminha pelas ruas cheias de luzinhas, agora deram de enroscar essas luzes em todas as árvores, fica bonito, podiam fazer isso o ano inteiro, joga o toco de cigarro no chão não pode fumar em frente da Marieta, ficou cheia de manias.Não era assim quando moça; estava exausto de tantos natais obesos e sem sentido, dos que criticavam seu consumismo, dos que defendiam o seu consumismo, pessoas com ar alucinado nos shoppings, trânsito infernal, espírito de natal e outras babaquices; fica pensando porque agüenta a mulher - que antes era pelos filhos ainda pequenos - se constrangiam com aquela gritaria toda, aquela presunção toda, fulana tem berço, ele é meu cupincha esticava o lábio para pronunciar a palavra que ele nunca entendeu, tão antipática - já que era para ofender, porque não dizer - capacho - e nos natais ela gostava de se mostrar altruísta, vez em quando, mandava roupas para os parentes pobres, eis seu prazer - achincalhar devagar- num risinho infantil compartilhado pela mãe, mais desbocada, meio sorriso no rosto que foi perdendo o contorno de alguma bondade, alguma misericórdia na fala mansa, olha aí, agora está parecendo uma grã-fina, parecendo gente, um quê de mórbido quando se dirigia aos mais pobres; comentava-se que sua mãe só havia conseguido fazer fortuna através da agiotagem, amantes e de uma mesquinhez endurecida- mulher de olhar ágil, fazia coro ao ambiente hostil, seu pai continua louco, você se parece com ele meu bem, fala tão devagar, será que beltrano não é meio bicha, atormentação vagarosa que surgia do nada, sua face num tom azulado e feroz; da irmã, tinha inveja racionalizada, disfarçada em bondade trivial, que eu tenho dinheiro e você é que parece gente fina, gostava de deixar no ar, dúvidas sobre hipotéticos furtos nessas reuniões em família - que coisa feia hein, não pode, não pode mexer nas coisas dos outros, que falta de educação, como se falasse para alguém invisível na mesa – mamã, sabe a Marita, minha amiga, finíssima, me t r o u x e da Argentina uns bombons maravilhosos; guardei no meu quarto para, às vezes, comer à noite; há dias venho notando que vem diminuindo a quantidade de bombons, estranho não é mesmo - os primos estão jantando, foram convidados para o batizado de um dos filhos; garfos permanecem no ar num congelamento amargurado, saem pela noite fria, não, não, não precisa, nós vamos tomar o ônibus, a irmã tem o rosto em desordem pela revolta; relembra os próprios filhos aturdidos, pai lê uma história pra mim, ele lia com voz compassada, fecha a porta pai, senão a mãe fica brava e fechava desnorteado, não sabia de onde viria o próximo tiro; agora com todos crescidos, já casados, que espécie de comodismo pouco higiênico seria esse, nem seria pelo dinheiro, ela sempre fora tão rica, tinha sua própria fortuna: - Eu tenho estirpe entendeu Alfredo, tenho berço, nem sei mesmo o que vi em você, meio ar de poeta, bem que meu pai me avisou, olha lá Marieta, o rapaz tem um ar meio sonso: - E eu fiz o possível Marieta, você sempre teve de tudo.

- Convenhamos Alfredo, tudo o que, essa casa ridícula, eu, eu, que estava acostumada com o do bom e do melhor, entendeu, entendeu, vai batendo os dedos freneticamente sobre a mesa os anéis faíscam nas mãos ossudas; tanto regime meu Deus, era tão bonita quando a conheci, tão delicada, parecia mesmo uma boneca, falava baixinho dizem que a menopausa transtorna, ou seria sedução, seduzia e hipnotizava, depois largava a presa meio comida, mastigada, meio viva, meio morta. Entra na confeitaria sob o olhar arisco e mal humorado do balconista que palita os dentes (ai, será que esse chato vai pedir muita coisa, tenho que pegar duas conduções para ir embora hoje, merda de patrão, todo Natal é a mesma coisa, só esse panetone chinfrim), o senhor vai querer o que, Alfredo avisa que veio buscar o peru, haaaa, já tá pronto, eu ia até levar, tá no meu caminho. Uma garoazinha enjoada cobre a cidade e o peru está quente de encontro ao peito, alguma coisa quente, pensa, encontra Marieta em frente ao arranjo de trinta papais-noéis nunca entendeu pra que tanto papai-noel, cada um fazendo uma coisa qualquer, cambalhota, cozinhando, anotando, um metido na banheira, um horror, bruta poluição visual , isso sim, a gente nem aprecia tanto exagero. -..... Que você demorou hein, é só a gente pedir alguma coisa pra você demorar, parece que faz de propósito. Ele olha meio desconsolado pela janela e vê os filhos que chegam com os netos. Por algumas horas ele se distrai com as crianças, lembram tanto os filhos pequenos, vô qué uma castanha, quando vem o papai-noel hein vô, aqui nem tem chaminé, por que esse Jesus nasceu nessa caminha de palha e ele explica floreando a história, Alfredo, as bebidas, não é porque tem garçom que você vai ficar só olhando, pois não, vê se faz alguma coisa de útil, pelo menos escolher vinhos você sabe, já que bebe também, o genro se chega solidário, quer ajuda seu Alfredo, dona Marieta tá com a macaca hoje hein, deve ser o espírito de natal, deve ser, deve ser o tal espírito ele responde num riso vacilante, mas madruga para outras épocas, quando é que esse casamento foi azedando, quando ele perdeu o emprego, arranjou outro logo, menor salário, menor posição, seria isso, quando a procurou na cama imensa, ela alegou que ele vivia suado, essa sua mania de jardinagem, dá nojo, nojo, nunca mais permitiu qualquer intimidade, mandou fazer um quarto separado, grande, grande, parecia um castelo...num casamento onde ela amasse só a instituição, como uma moldura que fica ali enfeitando, enfeitando, enfei... a taça de cristal faz uma pirueta engraçada como uma bailarina solitária e se espatifa no chão; um silêncio de sal grosso desce de repente ele começa a juntar os cacos, são tão pequenos não vai dar, deixa seu Alfredo, eu ajudo, deixa pai, não tem importância, os empregados limpam, ele a olha aturdido, ela espreme devagar um pêssego entre as mãos, o caldo jorra sobre a terrina inglesa, alguma coisa de errada você sempre tem que fazer não é Alfredo, não, não, Fernanda não me interrompa, não estou querendo estragar o Natal de vocês, é melhor mesmo levar as crianças para ver a árvore no jardim, dispenso opinião de genros que genro, a gente nunca sabe a intenção. - A sala está vazia, olha Alfredo eu tenho tido muita paciência, na minha família não existe essa coisa louca de divórcio, mas você tem passado dos limites com essa sua estupidez constante: -Foi só uma taça Marieta, pra quem merece meu caro, merece, nunca tentou algo para que eu o admirasse, procurou, procurou, o anjo azul pisca uma luz soturna, não me desquito porque sou cristã, entendeu, cristã, não vou te dar o gostinho de ficar com a Maria José, entendeu, aquela sonsa, espertinha, cafajeste, que fica te encarando na minha cara, isso foi há tanto tempo Marieta, ela não vem hoje aqui, não convidei mais, além de sonsa é mal-vestida, “pobrinha”, com mania de intelectual, não me faça mais perder a paciência Alfredo, o pêssego é uma massa amarelada em suas mãos, não quero mais me aborrecer entendeu, entendeu?? Foi só um pouco mais tarde que ele entendeu - num quase relâmpago; o analista dizia insight - raio, flash, estalo, que importa – que importa - quando ela destrinchou o peru que foi se abrindo em pedaços, as pernas arreganhadas e nuas, a carne que ia despencando sem alegria sobre a bandeja de prata; ele sentiu a cabeça que doía e a sala parou de rodar quando se levantou num ímpeto no meio da ceia e deu um beijo estalado em cada filho e neto, abraçou os dois genros. Saiu pela rua escura e caminhou depressa, depressa, nossa que alegria, que leveza meu Deus, o peito se expande no ar fino da noite, as poças são como estrelas caídas, será assim o tal espírito de Natal, entra meio que pulando na viela pequena, sente o odor de castanha cozida no ar. Maria José nem tem tempo de colocar um sapato, que aconteceu Alfredo, deixa eu por um vestido decente homem, estou de camisola, estava vendo a missa do galo, que aconteceu Alfredo, vem Maria José, vem agora mesmo comigo, vamos conhecer o tal espírito, que hoje é dia de renascer, renascer, entendeu, agora eu entendi, bate no peito com força tantos anos perdidos, renascer, renascer, minha querida, só renascer, puxa Maria José pela mão, beija-lhe a testa com ternura e somem na esquina do Natal.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 14/09/2012
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