Sem lenço, sem documento EC

O trânsito estava infernal. O calor insuportável. Atrasada para as aulas noturnas, Marina decidiu cortar caminho e não contornar a rotatória. Entrou direto na rua do supermercado.

Adivinha? Isso mesmo! Comando à frente, bem na hora do rush. Burra, pensou ela!

Teve a sensação de que algo ruim a espreitava naquela esquina da vida.

E agora, pensou com seus botões... o que devo fazer?

Faço cara de velório de parente? Finjo que vou desmaiar? Digo que tem alguém passando mal e espera por mim?

Essas soluções emergenciais que quase todo mundo pensa pra se safar de algum erro. Ou não?

Sair à francesa não ia dar nessa altura do campeonato!

O guarda a viu de longe e fez sinal para parar. Balançou o braço indicando o chão.

Marina desligou o rádio depressa, afinal música não ia combinar com sua cara de problema.

Parou e gelou. Empalideceu. Sentiu aquele frio que subia pela espinha. Agora ia mesmo se ferrar.

Moço bonito o oficial. Alto, olhos claros, dentes brancos e bem alinhados, uniforme impecável, apesar do calor, mas olhava-a com uma expressão grave, quase de condenação.

_Boa tarde, senhora. Inspecionou tudo dentro do carro apenas com um olhar.

_ Boa tarde seu guarda. Não esboçou nenhum sorriso.

_ A senhora sabe que não pode fazer o que fez, não é?

_ Sei sim seu guarda, eu errei. “Confiteor Deo omnipotenti... e ao oficial também”.

Teve que fazer o mea culpa, pois era só o que lhe restava naquele momento. Achou melhor pedir perdão a toda autoridade, no Céu e na Terra.

_ De fato, a senhora não deve fazer isso. Para onde está indo?

_ Para a escola, seu guarda. Tenho quatro aulas e estou bem atrasada por causa deste engarrafamento diário que ninguém consegue resolver. Seu guarda, isso é um descaso com o motorista, o senhor não acha?

_ De fato, senhora (ele gostava desta expressão – de fato). Isto é um problema. A senhora é professora? Prosseguiu ele a lhe inquirir com muita educação.

_ Sim, sou. Respondeu olhando para os carros que seguiam e ela, ali, parada. Não tinha coragem para encará-lo, pois o erro foi fatal, passível de punição, embora a gente sempre tem uma boa justificativa para não levar a culpa. Eu errei, mas o culpado é o trânsito.

_ Professora Marina? Arriscou a pergunta quase sorrindo.

_ Exatamente seu guarda. O senhor me conhece?

_ Sim, foi minha professora de Sociologia no terceiro colegial. Eu me lembro que a senhora gostava de levar músicas e o seu violão para deixar as aulas mais interessantes.

Ele sorriu e ela respirou aliviada. Não sabia se foi o “mea culpa” que deu resultado ou se foi a excelente memória do oficial.

Fazendo as contas rapidamente chegou há mais ou menos 12 anos. O tempo passa muito depressa...

Não pediu seus documentos. Pura sorte. Ela os havia esquecido em casa ao trocar de bolsa para combinar com os sapatos! Por que mulher faz isso?

Sem lenço, sem tempo, sem documento! Sem eira e nem beira!

Ele olhou para os dois lados da rua. Observou os outros oficiais que conferiam os documentos dos motoristas parados no meio-fio, esperou um momento (que, para Marina pareceu uma eternidade) e disse:

_ Pode ir professora, mas não faça mais isso. Ok?

Ele a chamou de professora e disse seu nome! Que coisa espantosa depois de tanto tempo!

_ Ok, caro aluno. Não me esquecerei desta lição. Hoje você foi meu professor. Até mais e obrigada.

Saiu cuidadosamente antes que ele pedisse os documentos.

Nunca mais ela fez aquilo e ficou feliz por fazer parte da vida daquele moço de maneira positiva. É tão difícil ser bem reconhecido nessa profissão, hoje em dia. Isso faz lembrar uma frase de Carol Buchner sobre o professor e seus alunos: “ Podem esquecer o que você disse, mas eles nunca esquecerão de como você os fez sentir”.

Ah! Nunca mais Marina esqueceu os documentos nem deixou de passar pela rotatória, mas continua combinando a bolsa com os sapatos. Coisa de mulher...

Mariacris
Enviado por Mariacris em 17/09/2012
Reeditado em 12/07/2013
Código do texto: T3885834
Classificação de conteúdo: seguro