Gervásio

Gervásio

Gervásio. Faleceu hoje, primo por afinidade. Estávamos assistindo a um filme deprimente quando veio a notícia. Pura coincidência. Mas a gente gosta, ou necessita pensar que não é coincidência - o sonhar com dente uma semana antes, dizem que é um aviso de morte na família. Estranho. Não comentei com ninguém. Gervásio era ninguém. Primo, com e sem afinidade, desagradável falar assim, era assim. Era gay, homossexual, optativo, não sei bem, o mundo inventa, pensa que sabe, pensa que entende, pensa ser juiz, e no retrato, quando menino, aparece de casaco curto olhando compenetrado para o fotógrafo e de laço na cabeça. Sempre vimos o retrato sem maiores comentários, que ficaria desagradável perguntar algo à nossa tia por afinidade e o que não foi perguntado em tempo e com decência, com o mesmo tempo, torna-se indecente, até que um dia, meu cunhado, com a franqueza dos europeus de tantas guerras, cavalos gordos em carroças com batatas e nabos mal cozidos, tentou um esclarecimento na base do por que do uso da fita, que ele parecia uma mulherzinha; e ficou um “mulherzinha” no ar que não suportou a pequenez do recinto. E aí, minha tia por afinidade houve por bem explicar que sempre, sempre quis, ter tido uma menina. Não sei se por esse motivo Gervásio cresceu com idéias particulares sobre o sexo, se era problema físico, mental, ou de opção, como querem muitos e nem isso teve muita importância na minha vida. Quando se é jovem, como já mencionei em outro lugar, passamos por sobre as coisas sem grande interesse em tocá-las, a não ser em nós mesmos. Havia comentários, olhares, risos, era uma outra época, não mais moralista do que a de agora, só mais contida; mas eu me divertia com ele, era espirituoso, certa sagacidade, certa maledicência inócua, certo sarcasmo estéril. No mais, segundo uma irmã, lembrava o Elliot do “Fio da Navalha” de Somerset Maugham; que os Albuquerque Lins estavam na tal festa, jantei com o escritor tal, sou amigo da socialite não sei das quantas; era beletrista, um nome e profissão estranhíssimos e suas palestras eram muito chatas.com.br. Só quando falava de Hollywood seu semblante se iluminava, talvez quisesse ter sido Fred Astaire, talvez Ginger Rogers, minha mãe era nossa Joan Crawford, eu era a Gina Lollobrigida, minha irmã a Kim Novak, por aí delirava. Sabia de cor todos os títulos e enredos, que artista faleceu, que astro divorciou-se, participando dos acontecimentos como um membro da família e elaborando comentários sobre filmes na televisão. Aos entendidos no assunto deixo os comentários sobre sua psique. Com a morte da tia por afinidade, casou-se com uma mulher estranha e rica que alguém precisava cuidar dele e ela providenciou tudo para ter, até que enfim, em quem mandar. Quando sua virilidade foi exemplarmente posta à prova, esclareceu que preferia ser pobre e livre. Não era só isso que eu gostaria de explicar ao prezado leitor, pois que a vida segue sem que você precise sempre perguntar o porquê, mesmo porque, ela só responde quando lhe dá na veneta. Comento sobre sua morte deitado e já despido de tudo, num necrotério à mercê da solidão, do clorofórmio malcheiroso, de um funcionário de unha encardida que lhe cobre displicente a nudez envelhecida e mastiga devagar um sanduíche de mortadela, olhando o casal que se estapeia numa televisão portátil. De duas primas que entraram no necrotério para vê-lo e retornaram discutindo sobre a cor do morto, se roxo ou cinza que os vivos precisam mostrar como estão vivos, mesmo discordando sobre a cor dos mortos. Comento sobre o distanciamento, aos poucos, ele foi se afastando, diziam que tinha um companheiro e que estava dilapidando a parca herança deixada pela mãe, como era muito estranho e com uma vida estranha, preferiu se separar dos familiares. Que morava num “muquifo”, que andava sujo e com a roupa manchada. Envelheceu, teve um derrame, eu o vi no teatro uma noite. E como pena ou dó não servem para muita coisa na vida, principalmente para quem é objeto desses sentimentos e, como não houve misericórdia, não acrescentei nada ao seu bem-estar. Não acrescentei nada, não o vi mais; não liguei para saber de sua saúde, se ainda era gay, se precisava de dinheiro, ainda que emprestado, que somos todos faraós e precisamos levar nossos bens para a mansão dos mortos, o caminho é muito longo e podemos passar fome e frio, eis porque só emprestamos; não me incomodei com a tia por afinidade que, já morta, eventualmente, estaria aflita com a sorte do filho pois que, como não sabemos nada sobre o lado de lá, eu podia me dar ao luxo de não ser tão solícita. Não havia tempo a se perder com um loser, como gostam os americanos. Não liguei nos Natais e Anos Novos, nas Páscoas, não ouvi suas histórias de Hollywood, ouvi coisas tristes e sem sentido sobre ele. Gervásio morreu. E a notícia veio enquanto estávamos assistindo a um filme deprimente, tive uma tontura e um pouco de ânsia, remédio forte que tomei pra coluna, só isso.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 18/09/2012
Código do texto: T3888235
Classificação de conteúdo: seguro