Diálogos da compaixão

Diálogos da compaixão

Morrer num sábado de carnaval em São Paulo é uma lástima. Não pelo natural bom humor do paulistano, questão de trânsito. Seria o mesmo se as férias já houvessem terminado, trânsito atrapalha a vida e a morte; achei um táxi, chego ao mesmo local onde, há um ano atrás, velei meu pai. Meio difícil compenetrar-se em velórios, o que significa compenetrar-se? Em termos preferenciais podemos: rezar, permanecer em silêncio, consolar os que perderam o parente próximo, consolar alguém que perdeu um familiar também é complicado que, às vezes, seria até o caso: - Meus parabéns! Parabéns para você que agüentou essa trolha aí, e agora, uau, muitos anos de vida!! Não dá para se falar o que seria uma verdade cruel e vamos para o mais comum:

- Está melhor que nós! - Coragem minha filha! - Os desígnios de Deus - Estava sofrendo muito, descansou!

Normalmente elaboramos essas frases para os parentes daquele que morre já meio “acabadão”. Como se já houvessem usufruído a quota máxima de sua ração, estourado o orçamento permitido, surdo, cego, manquejando e praguejando, sem memória atual, o milagre da ciência e tecnologia modernas - com tantas dores quantas forem os números de juntas, sem comer, sem dormir, sem trabalhar, suar, sem agendar, criança feia, só as birras:

- Você sabe que não pode comer abacate - olha o colesterol!!

- Que alicate? Não vi não.

- Abacate! A b a c a t e!! Ai que nervoso que me dá, falar alto desse jeito!!

- Perdeu os óculos, de novo?

- Eu já avisei para tomar banho com a porta aberta! Se cair, tiver um troço, quem é que vai tirar você daí?

- Calma, calma, calma...Deixa que eu resolvo. Olha o degrau...um, dois, um, dois, respire .

- Não adianta que ele não escuta!

-Vou ter que repetir a novela inteira? Ela confunde todos os personagens...

- Pode falar perto dele; não entende mais nada, tá tantãnzinho......

Olhamos com certo horror e pasmo diante dos que morrem moços e com perplexidade a mulher da foice que passa descabelada arrancando as raízes jovens e se passar perto da nossa esquina, nessa situação os comentários são mais medrosos: - Nossa que triste! Tão moço!!- Cumpriu sua missão! Nem sabia ainda direito o que era o viver...- Tanta gente velha por aí devendo pra vida, e ele, que era arrimo de família e nesse velório sobre o qual comento, o falecido já era entrado em anos, já estava devendo para São Pedro, morreu como um passarinho, era uma cruz para a família, não gostava mesmo de viver, nem sentiu nada, viveu tudo a que tinha direito, não é porque morreu que virou santo, nem sentiu, plaft e caiu morto, etc., etc., etc., portanto dava pra conversar, tomar café e rever velhos conhecidos nesse velório.

Retorno ao início de minhas observações. Rezar automaticamente, não sei se adianta; nem para o morto que, eventualmente, não irá usufruir do automatismo de uma oração sem fé, nem para o que reza olhando o brinco da moça de cabelo criteriosamente armado com spray:

(Tem cara de funcionária pública..com esse brinco de pingente meio brega...)

(Nossa! Como a Lucia Helena está velha! Nem reconheci..!!)

- Claro!! Nosso filho já é um engenheiro, puxou o pai...né Carlos ?!!

(Puxou o pai, vai começar a apoteose mental., ela sabe que eu detesto isso...sempre fui mestre de obras ..festival de abobrinhas....)

(Ai, preciso me arrumar um pouco, vem gente importante no enterro, algum lobby sempre sai...)

Consolar, convenhamos, também é um ato bizarro., consolamos menos pela compaixão, mais pela polidez, - que com compaixão é, se me permitem, mais raro, compaixão significa - sofrer com - só “sofremos com” quem amamos, admiramos, respeitamos?? Na era da informática “sofrer com” é como um colar de miçangas pequenas que num dia de outono passeou no colo de uma moça, nos idos de 1930; a polidez é mais popular e menos comprometedora, meus sentimentos e está tudo nos “conformes”. Conforme a natureza, que separou todos em tão diferentes camadas como as zebras e os javalis, as leoas e tigres e hienas com suas roupagens tão diversas, o pescoço estica suspeitoso em direção ao morto, graças a Deus, era mesmo um javali, com um encolher de ombros, as listras eriçadas pela ansiedade acomodam-se.

Antigamente, servia-se café nos velórios durante a madrugada - pãezinhos, e bolos de fubá servidos em formas areadas onde ainda se podia ver as faces compungidas ou o brilho triste das velas enquanto um galo inconveniente saudava um dia novo dia, alheio à dor. Os hábitos mudam conforme a pressa de andar, de viver, de enterrar morto...

- Que horas são?

- Vinte e uma horas.

- E ele, morreu à que horas?

- Não sei bem, às cinco da tarde...acho eu.

- Nossa!! Então vai ser enterrado às cinco da manhã.. e eu que tenho que descer para Maresias..

- O enterro sai às oito da manhã...ainda vem um padre..

- Padre??!! Que padre? Tem mis s a a??

- Que missa ?? Não tem nenhuma missa, .é só para encomendar o corpo..

- Encomendar o corpo...pra quem hein??

- Como para quem??!!

- Fale mais baixo! Para quem mesmo uai!! Não sou obrigada a saber....

- Uée, para Deus, para quem mais? Para o governo, pra ONU, pra CPI dos vereadores, para quem haveria de ser fofa??!!

- Não precisa ser tão estúpida, tá nervosinha? E eu, que esqueci o celular...

- Não me diga que você vai ficar falando no celular, no meio do velório, feito uma perua de nenhum mundo!

- Claro que não!! Ia lá fora, tomava um ar fresco e aproveitava pra falar...Onde é mesmo que você disse que vai ser o enterro?

- Eu não disse. Mas é no Crematório da Vila Alpina.

- Outro velório? E ele vai ser cremado?!!

- Vai, vai. Pediu antes de morrer.

- Pelo amor de Deus!! E nesse crematório, será que demora muito??

- Não sei...Vim pelo respeito ao morto..

- Tudo bem.. mas agora...ele já morreu mesmo. Para ser sincera, eu vim por consideração à viúva, família. Você sabe, eu não conhecia o defunto.

- Agora, nem vai dar tempo...

- O caso é que parece que ele ajudou muito a carreira do Guilherme...afinal, você está aqui porque mesmo??

- Só por respeito ao morto, compreende? Nosso desconhecido, o. futuro que nos espera.

- É e e e...cada um na sua...cê me dá licença um instantinho...tem um outro velório ao lado...me parece que era filho de um figurão da assembléia... Cê me desculpe, mas não achou o morto feinho? Nossa! A dentadura caiu, tá horroroso!!

- Tem todas, não se preocupe que o morto nem vai perceber que você vai para outro velório e que falou mal da dentadura dele.

- Cê é chata hein! Afinal, quem beijou, beijou, quem não beijou, fecha o caixão...

- (Mulherzinha besta).Fui.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 18/09/2012
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