Habeas corpus

Resolvi desistir de mim. Quase seis horas e ainda não consegui bater os ovos para a omelete, e pensar que o óleo já há muito esquenta no fogão... Passo a mão na testa e um pouco de suor, sinto ainda o coração bater, mas não tenho gosto. Está escuro e o pavio curto da lamparina não ajuda. Tenho desgosto a me enforcar, um quase nada de ar sair de mim e nada entra... Droga, daqui a pouco os ovos já não servem mais de nada, bato duas três vezes e paro cá com os meus botões... Tem barulho de vento e a janela vez assim assopra... Não sei se ponho a farinha ou desisto mesmo, cheiro de queimado e uma azia doida me invade. Sei não, não tenho a vida que pedi a Deus, nem pedi vida nenhuma e aqui estou... Ai, agora me pego em blasfêmia, minha vó já me dizia que é um pecado sem perdão... E os que me ofendem, como devem se sentir? Melhor deixar essa tigela aqui e molhar o rosto. Tenho tanto desgosto, tanto desgosto e essa rã ainda se ateve a pular em mim. Nojo, ecaaaa! Vou cuspir! Assoar o nariz e limpar os dedos para não grudar na farinha. O balde é tão alto e não quero subir no tamborete, também não sei se ponho mais lenha no fogo, as vezes penso que a noite vai ser fria e mais tarde talvez precise de esquento... Minhas mãos, meus braços, meus cabelos. Os pés se arrastam lentamente e nem sei se ainda tenho tempo. Desisti de querer. Desisti de pregar o mesmo pedaço de tecido no mesmo tecido e ficar a remendar a vida como se a vida fosse somente retalhos. Resolvi querer pano novo. Pronto. Lavar novo pano no anil e estendê-lo em outro varal, ao mesmo tempo que não quero mais pano nenhum, nem a mim mesma. Os ovos. A omelete e o que eu ia fazer mesmo que já nem sei... Agora sim, o relógio aponta seis horas. Daqui a pouco passa a última caravana e tenho que ir. Me esperam meus pais e tenho que rezar o terço, dizer os mistérios e revelar mistérios que ainda não revelei. Menino, chamem as galinhas, andem, é hora de pô-las no poleiro... Cadê o pote, por onde anda minha visão que mesmo de óculos não consigo enxergar. Desisti, pronto. Vou agora mesmo por os ovos para os porcos, jogar água no fogão e alguém pode, por favor, abrir essa porta para mim. Abram, por favor, as portas. O cheiro forte das naftalinas está me provocando espirros. Desisti, já disse, desisti de ficar por aqui e não haver compreensão. Em outros tempos era diferente, eu me lembro... De tarde sentava no balanço debaixo da mangueira e brincava de contar história para o meu amiguinho que morava na casa ao lado. Desde que ele partiu que nunca mais o vi. Dizem, os invejosos, que ele mora no além, do outro lado da vida, para onde vou, sabe, depois, que aprontar essa omelete e pronto, já pus farinha, sal e o óleo esquentou. Está chiando... Enquanto frita, desisti de mim, faz tempo, muito tempo, só ainda não sei por que, mas desisti, é verdade.