Genuína Música Indiana

Não é de hoje que tenho familiaridade com assuntos relacionados à Índia. Meu irmão mais velho tem verdadeira veneração pelo país, mesmo não convivendo com ele, sempre que nos encontramos, nas poucas oportunidades, esse assunto por parte dele é bastante recorrente. De modo que, mesmo eu nunca sequer ter sonhado com a Índia, já estou até “expert” no assunto.

Todavia algo surpreendente me aconteceu. Numa determinada ocasião, quando de viagem a Madrid, ocorreu-me ficar hospedado na "ciudad" "universitaria" com os alunos da faculdade de belas artes de Madrid. Então foi aí que tive contato verdadeiramente com a Índia.

Estávamos eu e um grupo de pessoas, num bar próximo à Puerta Del Sol, numa noite de verão típica “madrileña” , em que o sol se põe preguiçosamente lá pelas 22:30 hs. Fazíamos um happy hour depois de uma sessão de cinema onde fora exibido uma coletânea de curtas do festival de cinema que estava rolando dentro das Belas Artes. Lá pelas tantas, chegou próximo a mim uma mulher com uma beleza exótica e bastante singular a qual me foi apresentada pelo nome de Hannãa. A princípio, pelo nome achei que fosse alguém de origem hebraica, disse-me, contudo, que sua família era originária do sul da Índia. Trocamos algumas palavras ali naquele momento que não sei precisar o que, o som estava muito alto, sei que acabei me perdendo dela. Afinal, aquele bar só parecia um bar. Na verdade, aquilo parecia mais uma nave intergaláctica do que qualquer outra coisa. Falava-se sobre tudo, menos de coisas objetivas relativas à sustentabilidade prática do sistema. Claro que naquela zorra entre letras, poesias, imagens, sons e tons geniais, era óbvio que certamente viria a me perder dela em meio aquela toda miscelânea . Às vezes me perguntava como que as pessoas ali conseguiam se entender. Existia gente de tudo que era lugar do mundo com os mais variados talentos para artes. Vários idiomas sendo falados ao mesmo tempo, uns falam sobre cinema, outros sobre artes cênicas, de outro lado o papo era sobre música e um grupinho mais ao fundo aproveitando a pouca luz, ensaiava algumas pinceladas. E o combustível do bar (nave)... bom melhor não tocar no assunto.

De manhãzinha, retornamos eu e um colega francês à casa dormitório, na "ciudad" "universitria" de Madrid. Antes, porém, de cair no sono profundo me veio à mente a imagem do rosto de Hannãa. Adormeci. Acordei por volta das 15:00 hs. Fiz um lanche rápido, calcei o tênis e sai para correr. Diga-se de passagem, que não há nada mais prazeroso que fazer qualquer tipo de esporte ao ar livre na "ciudad" "universitaria" "ride bike", caminhada, cooper , futebol e etc. Olha! Para tudo, o lugar é simplesmente o que há... perfeito. Grandes alamedas, campos, avenidas, rios, ruas com calçamentos estilo tapete e extremamente arborizadas, realmente, não dá para descrever, só estando lá pra ver. Assim como, não dar pra ficar parado e não interagir com o lugar de alguma forma nem que seja para namorar ou ficar soltando pipa.

Após os meus 120 minutos de “run”, cheguei próximo ao meu bloco de residentes, onde ali existia uma pracinha de esportes. Parei ali para me alongar e secar um pouco o suor e para minha grata surpresa vi Hannãa acabando de soltar da bike. Não resiste e corri até ao encontro dela:

- Olá, "buenas" tarde, Hannãa, lembra de mim... lá no bar "Del Puerta" .

- Claro. Você é o amigo do François. Fábio, não é...

-Sim, a gente tava comemorando o sucesso do curta do Wilbert no festival. Disse eu, meio sem jeito, afinal, excessos foram cometidos na noite passada.

Sorriu meio de canto com certa complacência.

- Você cursa alguma faculdade aqui? Perguntou ela.

- Não tô só de passagem. Estou hospedado no AP do François.

Respondi, ainda, que não estava cursando nenhuma faculdade ali, e que minha estada em Madrid se dava em função do triatlhon que iria correr lá no Parque do Retiro. Senti, neste momento, que me olhou com uma certa estranheza. Afinal, o que fazia um triatleta ali no campus... ao invés de estar treinando, e não em noitada de happy hour com os doidos das “Belas Artes”.

_ Triatlhon... ?! Tá, bom... Você disse que vai fazer um triatlhon no Passeio do Retiro?! Você vai nadar naquela água podre?!!! Ai,ai já tô fincando com peninha de ti.

- Bom, Fábio, devo-lhe dizer que somos vizinhos. Eu moro no andar de cima ao do François. Também quero te convidar para minha audição de música. Vou fazer uma apresentação esta noite, no campus da faculdade de Belas Artes, de música e canto indiano.

- Não me diga, Hannãa, você estuda música indiana? Disse, eu, com enorme entusiasmo, acho que nesta altura já estava com meus olhos brilhando como diamante. Ela Sorriu encaminhando-se para bike, fazendo menção que iria se recolher. Também meu corpo já, naquela altura, implorava por um banho. Passei, então, acompanhá-la naquele curto trajeto até os nossos aps. Já na porta nos despedimos e ela se despediu de mim deixando-me um sorriso como se nos conhecêssemos pelo menos a um século. A verdade é que nesse momento eu já estava perdido de amores por ela. Não sei dizer que tipo. Se era amor fraternal ou outra coisa qualquer. Porém meus pneus estavam arriados!

Durante apresentação de Hannãa, naquela noite, centenas de pessoas que passeavam pelo campus sentaram-se em meditação na grama alta dos jardins do pátio da faculdade ou, simplesmente, agruparam-se em frente à Hannãa numa concentração conjunta. Durante a execução das árias, muitas pessoas sentiram uma comoção mágica nunca experimentada antes. Só sei que posso dizer muito pouco sobre esses estados de consciência, uma vez que eles ocorrem dentro de uma efervescência subjetiva com sensação de ligeira embriagues em que somente pessoas que tenham tido essa experiência, sabem de fato o que se sucede em sede de alma. A música de Hannãa criava ao mesmo tempo sentimentos opostos, às vezes fortes e ásperos, de repente alegres e frenéticos, depois amorosos e doces. Em determinado momento da audição, notei que todos estavam deslumbrados, e ao final da audição de Hannãa muitos estavam comovidos e começaram a chorar. Inclusive eu, e olha que arrancar lágrimas minhas não é coisa fácil devido minha natureza nordestina. Quem me conhece sabe o que estou dizendo. Olhando para Hannãa, notei que ela própria era comoção pura e também chorava muito. Depois no coquetel, oferecido pela “Belas Artes”, ela nos disse que toda essas energias não haviam sido provocadas por ela, mas por sua escola, seu guru e os mestres de seu professor . Ela era somente um instrumento para abrir a porta por onde essa música podia fluir. A música já estava concebida, só precisava do instrumento, e por muitas vezes tinha apenas que cumprir o programa. Explico-nos que no meio, com a devida vênia de seu professor, inseria o seu solo de “ surbahar”, também conhecido como baixo sitar , é um instrumento de cordas dedilhadas usado na música clássica hindustani do norte da Índia, de sonoridade mais profunda e para muitos, de efeito ainda mais intenso, segundo ela; a sonoridade deste instrumento assemelha-se ao vina do sul da Índia – o Vina é um dos instrumentos mais antigos e importante desta região da Índia. Também explicou que, no final, ela tocou uma “raga” de caráter suave, lânguida e também livre da amarras sistêmicas da sua estrutura composicional, enquanto no começo sempre constituído pela grande “raga” de uma hora e 20 minutos de duração, em que a talentosíssima Hannãa demonstra toda sua arte e habilidade.

Mal consegui dormi naquela noite, precisava entender o que havia acontecido comigo e porque a música de Hannãa me deixou assim tão abalado como se um terremoto houvesse percorrido meu espírito, a ponto de me comover tão profundamente e de ter me levado às lágrimas. Estava muito ansioso para bater a sua porta, porém tive que esperar o dia seguinte.

Já de manhã, no outro dia, eu estava lá batendo a sua porta, confesso tive medo de ser inconveniente. Ao contrario, Hannãa foi super educada me fazendo entrar e me ofereceu uma xícara de chá indiano. Então, perguntei-lhe o que tinha sido aquilo que aconteceu ontem à noite durante sua apresentação. O que fora aquela comoção coletiva? Ela sem querer tocar, naquele momento, no assunto me convidou educadamente para uma caminhada pelo campus, prontamente aceitei. Saímos andando de forma aleatória pela "ciudad". Ela começou a falar sobre sua vida.

Ela estava em Madrid estudando música ocidental e, ao mesmo tempo, lecionava na faculdade de Belas Artes canto indiano. Hannãa, como já havia dito, era uma mulher de beleza exótica, diferente dos padrões femininos das mulheres ocidentais. Tinha feições suaves, uma tez achocolatada e olhos cor de mel, tinha entre 34 a 36 anos, não era alta e tampouco baixa, estatura mediana, talvez um metro e sessenta e cinco de altura. Hannãa era natural de uma cidade montanhosa no sul da Índia chamada de Tiruvannamalai. Sua família vinha de longa linhagem de músicos indianos que remontava aos primórdios da música indiana. Disse-me que a sua música era uma dádiva concedida por Deus diretamente aos Vedas e, que estes por tradição oral, a transmitiu em linha direta de sucessão aos devotos de sua linhagem. Num determinado ponto da caminhada, chegamos ao Jardim Botânico da "ciudad" de frente para o campus da faculdade de ciências botânicas. Aproveitamos o ar fresco e ensolarado daquela manhã de domingo, e lá nos sentamos na grama e ela prosseguiu falando sobre sua música. Nesse ponto da conversa, se existe o mel Hannãa era o néctar, substância com a qual se fabrica o mesmo.

Nessa altura, ela me explicou que seu país é cheio de contrastes. Um país com riquezas incontáveis e ao mesmo tempo sofrendo com a fome, epidemias e as enchentes. O desenvolvimento econômico detido pela explosão demográfica, pelos distúrbios políticos, corrupção, pelo nepotismo, por instituições retrogradas e pelo mercado negro. Todavia o legado espiritual da Índia é verdadeiramente incomensurável. Sobre a sua música, ela me falou que hoje os incontáveis músicos da Índia imitam em sua grande maioria a trivial música ocidental destinada ao entretenimento, o resultado é uma horrenda música bastarda, todavia eles precisam sobreviver e alimentar suas famílias. Os músicos verdadeiros, que se dedicam a execução da música clássica genuína, são pobres e desconhecidos. Ela me explicou que há um hiato profundo entre o norte e sul da Índia em termos de música. Enquanto a música do norte da Índia mesclou-se com maneiras de tocar e concepções musicais persas e árabes, a música do sul da Índia permaneceu fortemente hindu.

Conto-me uma história singular: “De Tan Sen, o grande mestre norte-indiano e músico da corte do Rei mogol AkBar, diz-se por exemplo que devido a seu canto uma vela começou a queimar, o sol nasceu uma hora mais cedo e que fora da época das monções surgiram nuvens e ocorrem chuvas intensas. Tudo isso provocado por sua interpretação. Quando lhe perguntaram com quem havia aprendido tais artes, Tan Sen respondeu ao poderoso AkBar que o seu mestre não se apresentaria a ele, porquanto cantava apenas para Deus. AkBar vestiu-se como asceta e foi com Tan Sen procurar o guru e, ao ouvir seu canto, caiu em transe divino, com o que jamais retornou para a sua antiga vida material”.

-Sabe, Fábio, ao que parece, esses magos da música estão hoje extinto. No entanto, na atmosfera mais sutil do efeito psicológico dessa música ocorrem ainda experiências profundas, semelhantes ao que aconteceu ontem à noite no campus das “Belas Artes”. Disse Hannãa.

Nesta altura fiquei novamente muito comovido, deu-me uma vontade danada de envolvê-la nos meus braços, porém me contive. Na verdade, estava me sentindo uma das poucas pessoas privilegiadas do mundo, afinal, estava tendo a sorte rara de encontrar um desses raríssimos músicos que ainda dominava as rígidas normas da música indiana antiga. Capaz de realizar a liberação de energias espirituais com perfeição dentro de contextos religiosos. Sobretudo porque a música de Hannãa exige do ouvinte uma disposição de entrega que normalmente é estranha a um ocidental, saber que por intermédio dela a música indiana começa atingir o “ouvido interno” da consciência transcendental de muitas pessoas jovens e também das mais velhas, algo que só se conseguia fazer, no ocidente, a tempo atrás, por intermédio de psicotrópicos, com a chamada música psicodélica do final dos anos 60 e início dos anos 70. Com as famosas experiências empíricas regadas a LSD. Estava mesmo me sentido um privilegiado, por poder fazer contato com uma personalidade na dimensão de Hannãa.

Mais tarde, Hannãa contou-me que no sul da Índia possui comprovadamente mais de 5.800 “ragas” com nomes e indicações exatas para cada execução diferente. Assim sendo, cada uma tem por base uma composição fixa que forma o cerne de uma melodia. As atividades musicais do sul da Índia têm enorme consciência da tradição genuinamente hindu. Os critérios para se avaliar a qualidade de um cantor ou um executante de Vina são tão sutis no que se refere aos microintervalos, à realização das mais delicadas diferenças de som e timbre, que praticamente não há critérios objetivos para se determinar quem é melhor, no entanto, há critérios para as qualidades que permitem dizer que determinado músico está entre os melhores.

Segundo ela, a voz humana é básica para toda a música indiana, seja ela de origem islâmica ou hindu, a forma como são recitados os livros sagrados, Os Vedas ou o Corão. Também foram utilizadas de forma semelhante na antiga cultura grega, que durante milênios também não houve nenhuma diferenciação entre cantar e recitar. A origem mítica das culturas ocidentais e indo-chinesa tiveram pontos comuns. Pode-se dizer que os povos ancestrais contentaram-se com um único som (OM), que eles cantaram em conjunto por um tempo interminável em seus ritos nos templos egípcios ou nas tendas mongóis. O s Vedas eram e ainda são cantados hoje com três sons, o som básico e os dois tons inteiros acima e abaixo dele. Isso também corresponde à recitações da “Musiké” grega dos textos homéricos, que de certa forma se assemelha ao canto gregoriano. .. De repente, a hora já se fazia avançar e achamos por bem retornarmos aos Aps dormitórios.

A manhã que passei junto à Hannãa foi um das coisas memoráveis da minha vida. Sua doçura, educação, cultura e a maneira como ela expunha sua música e sobrevoava toda a história da música universal era um verdadeiro deleite, porquanto também era uma excelente contadora de estórias. Fizemos viagens aos confins dos tempos e aos primórdios das civilizações, ouvimos juntos os uivos selvagens dos primitivos canídeos que inspiraram as primeiras canções rupestres, tocamos a essência do sagrado, visitamos os cânticos sânscritos, estivemos nas cerimônias sagradas dos povos aborígenes. Pois o talento de Hannãa de criar cenas em minha imaginação era inesgotável, ora cantando, ora recitando e reproduzindo os sons primitivos das antigas tribos xamânicas e de religiões já extintas, as cenas iam se reproduzindo, ganhando forma e movimento em minha mente. Que pessoa extraordinária essa Hannãa!!!

Noutra oportunidade, ela me contou sua experiência o com um “sadhu” que mais tarde se transformaria no seu guia pelo caminho de sua espiritualidade.

-Fabio. Disse ela.” Os antigos mestres não eram apenas cantores famosos, eram, sobretudo, iogues em estado de graça, conheciam os segredos dos Trantas, da Hatha-Ioga e das várias formas de energias ocultas. Todos eram ascetas puros e muitos, homens santos. É essa a maravilhosa tradição de nossa música, e ela se estende até os dias atuais, embora os prodígios que aconteciam quando esses mestres cantavam suas “ragas” ( chuvas, mudanças da natureza, domesticações de feras, etc...) não mais se realizem. No entanto, existe até hoje um efeito avassalador, em sede de experiência espiritual, sobre o ouvinte que sente as vibrações das frequências que emanam dessa música, na verdade, não se pode sequer dimensioná-la, é uma experiência individual que depende da plataforma espiritual em que cada um dos ouvintes encontram-se”.

Então, ela conta que quando de viagem ao norte de Calcutá. Ela estava caminhando ao longo do Ganges. Lembra que estava fazendo um calor quase insuportável e que os mosquitos estavam realmente muitos ferozes. Então começou a procurar uma sombra e a certa distância avistou uma cabana de barro. Ao se aproximar, não pode acreditar em seus olhos: encontrou então o “sadhu”. Mas, por um momento, hesitou. Lembrou-se dos pseudosadhus, musicistas que circulam em número considerável pela Índia e que através dos poderes adquiridos (“siddhis”) pela ioga, cometem maldades como as da magia negra, podendo, por exemplo, exercer um fascínio tão grande através do contato óptico o qual provoca uma compaixão profunda até que a pessoa entregue a ele todos os seus pertences. Disse-me que, realmente, estava indefesa e que não tinha a mínima condição de se defrontar com seus “siddhis” se aquela pessoa fosse um pseudosadhu.

Hannãa falou que por conta da hesitação passou direto pelo homem, que segundo ela, usava barba e cabelos longos e grisalhos tendo apenas um trapo a cobrir suas partes íntimas. Quando já havia passado por ele, disse que ouviu as suas costas uma voz inacreditável: “ Alô minha amiga !” Disse que ficou literalmente paralisada. “ Prazer em conhecê-la”. Ele sorriu convidativamente. “Venha, entre” – disse ele, indicando sua cabana.

Na cabana não havia nada além de uma velha caneca, uma esteira e um imenso “tambura negro (um instrumento musical de origem indiana composto por cordas dedilhadas e braço sem trastos, que costuma acompanhar a música vocal). Ela se sentou no chão, finalmente, o sol já não derretia mais o seu cérebro. Após algum tempo de silêncio, no qual o homem a observava atentamente, ela fez menção ao tambura:

- Que belo instrumento!. Disse, Hannãa ao homem. Ela falou que neste momento sentiu que seus olhares irradiavam bondade com uma força incomum. Foi quando homem perguntou se ela era músico e se estava em Calcutá para estudar canto... Hannãa sorriu acenando a cabeça num gesto positivo.

- Fábio, como ele podia saber que eu estudava canto indiano? Foi exatamente isso que perguntei pra ele. Só que sua resposta foi ainda mais surpreendente. Ele me disse que sabia que eu viria e que também sabia tudo sobre mim. Eu fiquei muito surpresa com sua revelação. Foi então que o sadhu, com todo cuidado, pegou o tambura e começou a tocá-lo. Fabio, que som! O instrumento tinha seis cordas, o que é muito raro, com uma afinação totalmente estranha aos meus ouvidos. Começou a cantar – lenta, profundamente, quase suspirando. Não pense, meu querido, que esse homem cantava bem, sua voz era um tanto áspera e primitiva. Mas havia por trás daquela voz uma sonoridade secreta, cuja vibração era apenas perceptível e, de certa forma, apresentava uma suavidade nos harmônicos de oitavas em frequências mais altas, que derivam do som fundamental, e que depois se incorporava ao seu cântico originário, conferindo ao mesmo uma densidade muito auspiciosa pela incorporação dessas frequências mais altas, que gravitam em sede do ultra-som, portanto inaudíveis, mas, por outro lado, se traduz em timbre: aquilo que chamamos de cor do som. Sinceramente, fiquei muito surpresa conquanto tivesse já intimidade com essa música. Meu ouvidos internos mantiveram contato com um tipo de sonoridade muito auspiciosa que jamais tinha ouvido antes. Para minha grande surpresa, tive a sensação de que uma brisa fresca me envolvia. Parei de transpirar e me senti refrescada ao passo que ferozes mosquitos param de me devorar. Entretanto, percebia que não havia nenhum movimento de ar, embora estivesse percebendo tudo conscientemente. A sensação de frio e frescor me invadiu a alma... Assim, Hannãa, narrava-me sua experiência e me exibia os pelos dos braços totalmente arrepiados.

- Enquanto emitia seu canto vigoroso e, ao mesmo tempo muito suave, ele me tinha os olhos constantemente nos meus, e os sons de seu tambura eram tão lindos e variados que relaxei e pude, finalmente, suportar o seu olhar. Pareceu-me que a cabana se abria por todos os lados e que podia olhar para os grandes espaços. E, finalmente, de uma forma genuína pude testemunhar e sentir o verdadeiro céu da transcendência. Seu rosto aquele altura era pura luz, tinha o olhar profundo, sério e amável, e logo todo e qualquer sentido temporalidade não existia mais. Essa experiência é, extremamente, parecida com estado psicodélico que a maioria dos ocidentais narra quando submetido à situações semelhantes... A diferença é que, neste caso, ela se dá num estado de pureza de alma, longe do peso das substâncias psicotrópicas que muitas vezes são maculadas de forma mundana”.

Depois dessa experiência ela sempre de quando em quando o procura para pedir orientações e sanar suas dúvidas em relação à Ioga. Seguir as práticas que ele a ensinou, agora já como seu mestre orientador de seu caminho de transcendência, é fundamental para o seu processo de desenvolvimento espiritual.

Foi uma pena eu ter que partir e deixar aquela pessoa tão especial. Francamente, o pouco contato que tive com Hannãa, cerca de 10 dias apenas, valeu-me como se fosse cada dia um ano. Assim, tenho impressão que vivi uma década inteira ao lado dessa pessoa, tamanha era a sua densidade na dimensão pessoa.

Então, galera. Posto isto, posso dizer com todas as letras. Eu conheci Hannãa.

Agora, o próximo capítulo dessa viagem ao mundo da música se dar em Barcelona, música flamenca, tendo como anfitriã a minha muito querida bailarina flamenca chamada Leda.

(Fábio Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 08/10/2012
Reeditado em 26/10/2012
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