O PADRE
Foi após o término do meu trabalho. Sentei-me a mesa de um
bar, Augis era o nome. Sempre que saio do serviço, vou tomar um
vinho, às vezes uma cerveja, depende do clima, se frio ou quente. O
garçom, apelidado de Alemão devido a sua pele clara e cabelos
totalmente desalinhados, sempre me atende.
– Tudo bem doutor? - cumprimentou ele sorridente.
– Tudo... um vinho, o de sempre, por favor. – respondi
sentando-me confortavelmente a cadeira, de frente para a rua.
– Para beliscar?
– Por favor, uma porção, melhor, meia, de carne seca, alho
torrado, pão, maionese. – insisti.
Alemão, como sempre, me atendeu prontamente.
De repente, entrou uma pessoa que eu tinha certeza de que
conhecia. Olhar taciturno, sentou-se em uma mesa ao lado da
minha. Olhou-me pelo canto dos olhos, com certeza me reconheceu
de algum lugar. De onde nos conhecíamos? Pensei.
Sorrimos um para o outro e nos cumprimentamos
cordialmente. Escutei o seu pedido.
– Uma cerveja bem gelada, uma porção de tilápia!
Olhamos novamente um para o outro, com certeza éramos
conhecidos. Comecei a rememorar o meu passado, como faz um
catador de lixo reciclável em busca de algo que realmente tivesse
valor, neste caso o lixo era a minha mente.
O vinho chegou gelado, e a minha porção, com alho torrado. O
indivíduo na mesa do lado me olhava com curiosidade. Quando
levei à taça de vinho à boca, escutei sua voz....
– Perdão... por acaso o seu nome é Claiton?
Olhei para o estranho, que, na verdade, não era tão estranho
assim, e concordei prontamente.
– Sim, e você, quem é? Indaguei para aquele homem gordo,
postado a minha frente. Ele sorriu e, sem ser convidado, puxou a
cadeira e sentou-se a minha mesa.
– Tente adivinhar, se não conseguir eu lhe dou uma dica.
– disse e sorriu.
Ficou me olhando, esperando que minhas lembranças viessem
à tona e que eu lhe dissesse um nome, algo que com certeza eu não
faria. Perguntei.
– E então, qual é a dica, não sei quem é você? - insisti, olhando
para aquele homem gordo, de sorriso maroto e de olhar carinhoso.
– Não acredito... Olhe, olhe bem, sou eu...
– Eu quem? – indaguei, já sorvendo um gole do vinho,
enquanto ele entornava a cerveja, em um só gole.
– O predador e o pastor. Agora se lembra?
Desatei-me a rir. Agora sim, olhando aquele Ser gordo
completamente modificado à minha frente, eu o reconheci. Sim, era
ele, o meu colega de colégio, provavelmente eu não o via a mais de
30 anos.
Sim, o predador, o homem com quem todas as meninas
sonhavam e por quem todas as meninas choravam. Agora, obeso,
calvo, branco como um boneco de cera, sem alegria, praticamente
quase sem vida.
– Não acredito! É você Juliano? Como você engordou, ficou
careca, o verdadeiro comedor, quem diria?! O que faz na vida? –
indaguei, sorrindo.
– Deixa isso pra lá, vamos conversar. Você parece bem, um
tanto solitário, mas bem. O que faz? Quanto tempo?! Como a vida
muda!
Respondi.
– Eu? Eu fiz aquilo que ninguém esperava, estudei, me formei
médico, casei, descasei, casei novamente... - novo gole de cerveja,
ele olhou-me com um sorriso nos lábios. Não permiti que ele
falasse.
– Já sei, não precisa me lembrar. Sou um idiota, casar e descasar
e casar novamente é coisa de louco.
Ele sorriu e encheu um novo copo de cerveja. Ingeriu a bebida
com avidez.
– Que bom que você reconhece... – riu – Mas, a vida é assim
mesmo. – concluiu.
– Você, que faz na vida? – perguntei. O vinho tinto suave,
estava maravilhoso. O néctar da uva... que bom poder relembrar os
velhos amigos!
Ele olhou-me com desdém.
– Médico, logo você que tinha medo de sangue, nas aulas de
anatomia fugia para não dissecar um rato ou um sapo. Lembra?
Sim, eu me lembrava agora, tudo vinha em minha mente como
uma enxurrada de informações. Indaguei.
– E você, diga-me que profissão exerce?
– Nem te conto.
– Conta sim. Preciso saber o que o predador faz na vida. Hoje
em dia temos todas as profissões, tem de tudo: médico, advogado,
escritor, pastor, jogador. – ri e completei o raciocínio. – Até mesmo
um comedor, digo predador.
Meu amigo sorriu.
– Você acertou. – concluiu.
– Acertei? O que acertei?
Ele encheu o copo novamente.
– A minha profissão esta dentre uma dessas que você
mencionou.
Pensei. Médico, acho que não, eu teria o conhecido como um
colega. Advogado, talvez, mas um tanto quieto para exercer uma
profissão tão dinâmica. Escritor, sim, tinha uma fisionomia que
expressava calma, tranquilidade. Pastor, não, não estaria bebendo
tanta cerveja. Predador, jamais, estava gordo, careca, dificilmente
conseguiria conquistar corações, como antigamente. Administrador,
ou, talvez, um jogador inveterado de carteado, ou
apostador em cavalos de corrida. Precisava falar alguma coisa.
– Administrador. Acertei?
– Não, digamos que eu cuide de gente, assim como você, mas
de uma maneira mais espiritual.
Ri.
– Pai de santo? – sugeri.
Ele riu abertamente, e batendo em meus ombros, respondeu.
– Quase... Eu sou um padre.
Fiquei boquiaberto, não podia acreditar. Padre, o predador,
agora era um padre. Fiquei atônito.
– Como? Padre, desses que rezam missa, que dão comunhão?
O velho amigo coçou os poucos cabelos que ainda restavam.
– Para você ver como a vida muda. De grande comedor, tornei-
me um padre, e aquele que tremia ao ver sangue, se tornou um
médico. – assim dizendo se levantou. Eu fiz o mesmo. Abraçamo-nos.
A cerveja estava completamente vazia, o vinho ainda pela
metade.
– Amanhã, eu vou rezar a minha primeira missa nesta cidade, e
gostaria que você estivesse presente. Vou me sentir orgulhoso de
tê-lo em minha igreja.
Há muito tempo eu não entrava em um santuário.
– Qual é o nome da igreja?
Ele já estava saindo.
– Igreja da Santa Terezinha, conhece?
Claro que conhecia. Meu casamento tinha sido lá, era onde eu
brincava quando criança.
[O meu velho amigo se foi].
Fiquei pensando... a vida nos prega uma porção de peças, como
um quebra-cabeças que nunca chega ao fim, ir à missa do meu
antigo colega seria o mesmo que colocar a última peça do quebra-
cabeças.
Conclusão, contrariando todos os meus conceitos, no dia
seguinte, lá estava eu sentado na primeira fila, na casa do Senhor,
prestigiando a cerimônia de um antigo predador.